- “Câncer gay”. Foi desta forma que um deputado-pastor, conhecido nacionalmente por suas declarações homofóbicas, referiu-se à Aids, durante pronunciamento em um congresso religioso, realizado em 2012. Três décadas após o surgimento do HIV no Brasil, o político continuava acionando antigas metáforas, que misturavam ciência e religião para culpar os homossexuais pela epidemia.No Brasil, a associação entre homossexualidade, pecado e doença – expressa, por exemplo, na origem dos termos sodomita, invertido, pervertido, uranista – assumiu novos significados com o aparecimento da Aids, veiculados também nos meios de comunicação. Na manhã de domingo de 12 de junho de 1983, os leitores do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, e do Notícias Populares, de São Paulo, depararam-se com as manchetes “Brasil já registra 2 casos de ‘câncer-gay’” e “Peste-Gay já apavora São Paulo”. As reportagens anunciavam os primeiros casos de Aids no país. Dias depois, o Diário do Nordeste, de Fortaleza, relatou que o termo “câncer gay” estava “largamente difundido no Brasil” como sinônimo da epidemia. No início daquela década, muitos outros textos jornalísticos, inclusive em revistas semanais como Veja e Isto É, classificaram a doença dessa maneira.Mais do que informar os leitores sobre uma questão de saúde até então desconhecida, os meios de comunicação atualizaram preconceitos, medos e vergonhas já relacionados ao câncer e à peste. Como o câncer, a Aids passou a ser sinônimo de morte. A imagem de uma caveira encapuzada era bastante comum nas reportagens sobre a doença. Como a peste, a epidemia foi associada a um castigo divino.Essas imagens sensacionalistas não se limitaram às primeiras páginas da grande imprensa: eram reproduzidas pelo próprio público. Em 10 de julho de 1985, um leitor do Diário do Nordeste escreveu à seção de cartas do jornal: “[...] do jeito que as coisas andam, só mesmo com uma praga como esta para alertar os sodomitas. Pode-se dizer que, em certos lugares, no mundo e no Brasil, está pior do que em Sodoma e Gomorra”. A Aids invadia o cotidiano dos brasileiros e afetava particularmente a vida dos homossexuais masculinos, que eram responsabilizados pela disseminação do HIV.Os discursos em torno da nova epidemia, anunciada como a “mais terrível doença do século”, adquiriram uma dimensão mais ampla ao serem legitimados por instituições de referência. Se hoje são os evangélicos fundamentalistas que aparecem como porta-vozes da condenação de gays, lésbicas, travestis e transexuais, no início dos anos 1980 a tentativa de controle das sexualidades vistas como “anormais” ou “antinaturais” partia principalmente da Igreja Católica. Em 1986, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reprovou a primeira campanha nacional contra a Aids promovida pelo Ministério da Saúde. A rejeição aos filmes veiculados – especialmente pela utilização dos termos “camisinha de vênus” e “coito anal” – insere-se na longa tradição da instituição em criticar a “permissividade sexual” e o “sexo por prazer”. Um ano antes, Dom Eugênio Salles, cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, já havia publicado no Jornal do Brasil um artigo intitulado “O mal e a covardia dos bons”, em que afirmava que a doença era um castigo divino contra as “inversões” na sexualidade.Fontes não religiosas também contribuíram para a construção de uma imagem equivocada sobre o assunto. Em agosto de 1985, o médico João Lélio Mattos Filho aproveitou o XIX Congresso Brasileiro de Patologia Clínica para afirmar que os homossexuais eram “portadores de imunodeficiência precoce: daí porque já teriam predisposição à Aids e a outras doenças venéreas”. Os argumentos de Mattos Filho mantinham certo parentesco com as teorias médicas do início do século XX, que procuraram explicar a homossexualidade em termos biológicos (ver texto na pág. .....).Ainda que começassem a aparecer notícias sobre infecções entre heterossexuais e que a noção de “grupo de risco” fosse cada vez mais criticada, os homossexuais masculinos – e as travestis – permaneceram como os principais alvos de preconceito. Foi nesse cenário que passaram a organizar uma reação mais intensa e articulada. Se, por um lado, a cruzada religiosa-médica-midiática transformava os gays em sinônimo da doença e fazia parte da sociedade acreditar na epidemia como castigo divino, por outro, o pânico social e moral da Aids fortaleceu a luta homossexual contra os preconceitos. Em 1985, o Grupo Gay da Bahia (GGB) conseguiu uma vitória significativa: em campanha, fez o Ministério da Saúde excluir o código que definia a homossexualidade como “desvio ou transtorno sexual”. Era um novo capítulo para reescrever a histórica associação entre práticas homossexuais e doença.Com a Aids, a sexualidade ganhava dimensão política. Emergiu uma nova militância homossexual, ampliando radicalmente as experiências existentes desde o final dos anos 1970. As lutas iniciadas pelo GGB, pelo Grupo Somos, de São Paulo, e pelo jornal Lampião da Esquina – produzido no Rio de Janeiro e distribuído nacionalmente – somaram-se à luta contra a Aids, baseada no protagonismo dos homossexuais na construção de estratégias contra a doença.Os discursos discriminatórios desencadeados pela epidemia contribuíram para o empoderamento dos sujeitos. No início da década de 2000, a travesti Janaina Dutra, então vice-presidente do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), de Fortaleza, resumiu as transformações ocorridas desde meados dos anos 1980: “A Igreja tripudiou em cima, o Estado tripudiou em cima, disseram que era câncer gay. E tudo isso foi desmistificado; hoje, o pessoal luta pela parceria civil, as travestis passaram a ser convocadas para falar, para ajudar na conscientização em relação à doença”. Para Janaina, a Aids foi um “passaporte” para que travestis se tornassem educadoras voltadas para a política da saúde e de prevenção. Isto trouxe abertura, conscientização e ajudou a garantir a cidadania plena dessas pessoas.Abrigados sob a sigla LGBT – já não se tratava somente de homossexuais masculinos, como nos primeiros anos da epidemia – lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais uniram-se em associações para criar políticas de prevenção. Entre elas, aquela baseada na ideia de sexo seguro, representada pelo uso da camisinha nas relações sexuais, e a assistência às pessoas vivendo com HIV/Aids. A criação do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (GAPA), em 1985, primeira ONG do país voltada ao tema, foi um marco desse novo cenário.Apesar dos avanços, a desqualificação das experiências de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais está voltando por meio dos fundamentalismos religiosos. Discursos homofóbicos como os do deputado-pastor, já citado, são uma clara reação conservadora às transformações conquistadas pela comunidade LGBT nas últimas décadas. O debate político-midiático acerca do “kit gay” (kit Escola sem Homofobia), da “cura gay” e, recentemente, da “ideologia de gênero”, revela que a questão da Aids transformou-se, com o tempo, em batalha a favor dos direitos humanos.A esperança pela cura da Aids, pela aprovação da lei contra a homofobia e pela introdução das questões de gênero na educação relaciona-se com a luta mais importante: o combate ao preconceito. Este, sim, a pior das doenças.Elias Ferreira Veras é pesquisador do Laboratório de Estudos de Gênero e História da Universidade Federal de Santa Catarina (LEGH/UFSC) e do Grupo de Pesquisa e Estudos em História e Gênero da Universidade Federal do Ceará (GPEHG/UFC).Joana Maria Pedro é professora da Universidade Federal de Santa Catarina e coautora de Nova História das Mulheres no Brasil (Contexto, 2012).Saiba MaisFOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009.SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro: Record, 2011.VALE, Alexandre Fleming C. O voo da beleza: experiência trans e migração. Fortaleza: RDS, 2012.FilmeJanaína Dutra: uma dama de ferro (Vagner de Almeida, 2010)
Viver e lutar
Elias Ferreira Veras e Joana Maria Pedro