Dias trágicos

Magda Ricci

  • Já se passara quase um ano do notório Sete de Setembro, e o Grão-Pará continuava alheio à Independência do Brasil. Nesse momento, aportou em Belém o inglês John Pascoe Grenfell (1800-1869), a bordo de um navio de guerra. Enviado pelo imperador D. Pedro I, o comandante de 23 anos trazia um comunicado: uma grande esquadra estava a caminho para garantir, por bem ou por mal, a adesão do Grão-Pará ao Império.

    Grenfell estava blefando. Estrategicamente, omitiu o fato de que a tímida esquadra despachada por D. Pedro I fora se dividindo em paradas prévias na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão (ver RHBN nº 38). O que restava era insuficiente para conquistar à força o extremo Norte do país. Mas não haveria confronto. O Grão-Pará – que na época também incluía a área do atual estado do Amazonas – foi incorporado ao Império do Brasil em 23 de agosto de 1823 de forma aparentemente pacífica. Só aparentemente.

    A elite da província mantinha estreitos vínculos políticos, econômicos e até matrimoniais com Portugal. As amplas redes de comércio e de casamentos naquela região envolviam também ingleses e franceses, por conta das intensas transações interatlânticas. Esses laços já vinham se firmando desde 1809, quando Caiena, na Guiana Francesa, foi tomada e anexada ao território paraense a mando de D. João VI. Os comerciantes do Grão-Pará lucraram muito com a abertura dos portos, decretada no ano anterior, e se empolgaram com a Revolução do Porto de 1820, em defesa de uma Constituição liberal, com a volta do rei para Portugal.

    Se por um lado acompanhava de perto a política lusitana, a elite paraense não demonstrava muito interesse pelo que acontecia no Rio de Janeiro. Em 1820, fez questão de mandar representantes para discutir a nova Constituição em Lisboa. Três anos depois, não enviou nem mesmo um deputado para a Assembleia Constituinte convocada por D. Pedro I na Corte.

    A independência carioca, entretanto, semeou divergências internas quanto ao destino do Grão-Pará. Àquela altura, muitos comerciantes estavam desiludidos com os rumos da política na velha metrópole e se inclinavam a apoiar o novo monarca entronado no Rio de Janeiro. Diante do ultimato apresentado pelo comandante Grenfell, a elite pôs-se de acordo e aderiu à Independência, em agosto de 1823. O que não encerrava a questão. A tensão ainda presente entre os habitantes de Belém daria origem a um episódio trágico e pouco conhecido: o massacre do brigue Palhaço.

    Nas ruas de Belém, aumentavam as pinimbas entre os brasileiros nascidos na terra e aqueles tidos como “adotivos” – os portugueses “enraizados” no Pará. O conflito chegou às forças de segurança locais: insatisfeitos com o pagamento irregular, as tropas “nacionais”, ou melhor, paraenses, iniciaram um movimento para exigir um tratamento diferenciado em relação aos soldados que vinham das antigas tropas portuguesas.

    No dia 15 de outubro, as tropas se dirigiram ao largo do Palácio. Depois de tentarem arrombar o Trem de Guerra (depósito de munição), cercaram a Junta de Governo do Pará. Sua revolta ia além da questão do soldo: era contra todos os portugueses, e mesmo contra todos os estrangeiros. Passaram a noite entre reivindicações e acuadas promessas dos governantes. No dia seguinte, os rebelados saquearam várias lojas e tentaram entrar a machado nas casas de negociantes portugueses e ingleses. A tomada da cidade só foi impedida pela defesa do Trem de Guerra, pois a intenção era obter armas e munição para distribuir entre a população, que começava a tomar parte no negócio. No dia 17, enquanto os levantados se recolhiam aos seus quartéis, aportavam em Belém as tripulações dos navios, as milícias e os paisanos armados. Esta força unida restabeleceu a ordem.

    Para dar fim ao motim, o governo solicitou o auxílio do comandante John Pascoe Grenfell. O inglês foi inclemente. Cinco líderes das tropas paraenses foram presos e executados sem direito a julgamento. Outro preso foi o arcipreste da catedral da Sé de Belém, cônego João Batista Gonçalves Campos. Levado para o largo do Palácio do Governo, ele foi posicionado diante de um canhão para que confessasse sua participação como “cabeça” da revolução. Salvou-o uma petição pública da Junta de Governo, em que o bispo local lembrava que explodir sua cabeça seria dar um pernicioso exemplo às classes “inferiores”, especialmente os escravos africanos.

    Nunca foi devidamente esclarecido por que o enviado imperial Grenfell ordenou a execução sumária em praça pública de cinco brasileiros sem culpa formada, uma vez que a adesão à Independência já havia sido consumada. Pelo mesmo motivo, é difícil entender tamanha revolta entre os amotinados. Mandado para julgamento no Rio de Janeiro, o cônego Batista Campos escreveu uma ampla defesa de suas ações. Segundo ele, a Junta que aclamou a adesão do Pará à Independência se fez “surda aos clamores da razão, da justiça, da prudência”, desrespeitando uma petição assinada por “quatrocentos e tantos cidadãos” que requisitava a demissão dos empregados civis e militares que não aderissem à causa brasileira, removendo-os da província. Os rebeldes de outubro, revoltados com a omissão da Junta, teriam ido até sua casa, forçando-o a ingressar no movimento. Ele afirmou ter tentado controlar a multidão, que gritava palavras de ordem pesadas, como “Morte aos europeus!”

    Pedir a saída dos portugueses poderia soar como uma reivindicação justa e afinada com a causa da Independência brasileira. Mas clamar pela morte dos europeus era algo bem mais amplo e radical. Para o brigadeiro português José Maria de Moura, comandante das Armas da província deposto com a Independência, a origem de tudo estava na extrema insubordinação das tropas, sobretudo nas patentes mais inferiores, que, depois da adesão do Pará, passaram a hostilizar os europeus enraizados ali. Ainda antes de outubro, alguns oficiais teriam tido a ousadia de ir até o presidente da Junta de Governo exigir a expulsão de todos os oficiais portugueses das tropas do Pará. Este primeiro levante fora sufocado, seus cabeças foram presos, mas logo libertados devido ao clima político favorável à rebeldia patriótica brasileira. Isso teria aumentado a “ousadia” desses brasileiros que não queriam mais ser governados, na política e nas milícias, por estrangeiros, especialmente portugueses e ingleses. Parece contraditório pensar que esses “patriotas” radicais na verdade tinham como governante supremo um imperador português de nascimento. Mas é preciso lembrar que, em 1823, a noção de pátria ainda não era muito bem definida por aqui. Os revoltosos, por sinal, agiam em defesa de Pedro I, supondo que ele estaria sendo desrespeitado pela Junta do Pará. Sua rebelião era contra os governantes paraenses de origem estrangeira.

    A punição ao movimento não terminou com as cinco execuções. Mais de cem soldados foram conduzidos à cadeia, além de cerca de 300 civis suspeitos de envolvimento. Na noite de 19 de outubro, muitos presos tentaram arrombar a cadeia, e foi necessário assentar a artilharia em frente à prisão. Em consequência disso, 256 homens foram transferidos para os porões do brigue Palhaço (o menor tipo de navio de guerra na época). Em questão de horas, estavam quase todos mortos.

    Alguns relatos dão conta de que esses presos estavam muito inquietos e que os soldados ou seus superiores (nunca se soube quem foram os mandantes) jogaram cal para supostamente acalmá-los. Para o brigadeiro Moura, não houve massacre. Segundo ele, os prisioneiros tentaram sublevar-se, o que obrigou sua guarda a abrir fogo contra eles, ocasionando a morte de 12 pessoas. Depois disso, o grupo teria se aniquilado por si próprio: “Tão extraordinária foi sua desesperação e tão inaudita sua ferocidade, que depois de se esganarem alguns camaradas europeus, continuaram a mesma cena uns contra os outros, de sorte que de 256 de que 12 morreram de fogo, só 4 ficaram vivos e ainda um bem maltratado”. Em suas palavras, foi um “horrendo espetáculo” ver “desembarcar 252 mortos”, o que “deixou a todos estupefatos”.

    Como explicar a matança? Certamente ela se relacionava à visão que portugueses e até ingleses tinham dos revoltosos paraenses. Apesar de presos, eles eram uma ameaça constante. O brigadeiro Moura concluiu seu depoimento da seguinte forma: “Diz-se que o fim da conspiração era horroroso, que se queria matar todos os europeus de qualquer nação”. Para portugueses como ele, os levantados de 1823 pretendiam mostrar lealdade ao monarca Pedro I aniquilando todos os estrangeiros.

    O massacre do brigue Palhaço rompeu de modo contundente com a adesão inicialmente pacífica do Grão-Pará à Independência do Brasil. Após outubro de 1823, a possibilidade de uma adesão sem rebeldia extinguiu-se definitivamente. A província viveria uma década de turbulência política, culminando com a Cabanagem, movimento de revolta que explodiu na Amazônia em 1835.

    No Grão-Pará, o grito “Independência ou morte!” faria jus à história.

    Magda Ricci é professora de História da Universidade Federal do Pará (UFPA) e autora de
    “Entre portos, comércio e trocas culturais: os portugueses e as lutas sociais na Amazônia – 1808–1835”. In: Maria Izilda Matos; Fernando de Sousa; Alexandre Hecker (orgs.). Deslocamentos e histórias: os portugueses. 1ª ed. Bauru: Edusc, 2008.


    Saiba Mais - Bibliografia:

    COELHO, Geraldo Mártires. Anarquistas, demagogos e dissidentes: a imprensa liberal no Pará de 1822. Belém: Cejup, 1993.

    COSTA, João Lúcio Mazzini. Rei Congo. Belém: Produção Independente, 2004.

    REIS, Arthur César Ferreira. “O Grão-Pará e o Maranhão”. IN. HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.) História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1978, tomo II, v. 2, pp.71-139.