A essência do gesto

Rubens Ricupero

  • São Paulo se preparava, nas duas primeiras décadas do século XX, para multiplicar sua população 40 vezes. Foi quando os filhos de imigrantes, confiantes em seus direitos de brasileiros natos, se lançaram à luta pela conquista de um lugar melhor na sociedade de adoção. Nem antes nem depois houve momento de tanta intensidade na maneira de ser ítalo-brasileira.

    Essa história começou décadas antes, quando os primeiros imigrantes italianos aportaram no país para trabalhar nas fazendas de café na segunda metade do século XIX. Muitos de seus descendentes acabaram por atuar como operários na produção de bens de consumo, alimentos ou tecidos, que era dominada pelos seus patrícios Matarazzo e Crespi. Mais tarde, com o desenvolvimento da indústria pesada de máquinas e equipamentos, a inventividade mecânica dos italianos do norte iria criar gigantes industriais, como os Bardella, os Dedini, os Romi. Junto com isso, trabalhadores introduziam, no Brasil, as correntes de pensamento e ações sociais da Europa contemporânea – o anarquismo, o socialismo, o movimento sindical –, que se tornariam conhecidas, na linguagem policial de então, como “doutrinas exóticas”.

    A maior parte dos imigrantes submergiu na comunidade luso-brasileira, isolando-se em áreas como o Rio, Minas ou Bahia, e acabava normalmente dissolvida na massa, sem guardar muitos traços da velha identidade. Mas havia também vários pequenos grupos transplantados intactos da Itália para o interior, em sua maioria vênetos – originários da Venécia – e trentinos, que foram parar em Santa Catarina ou no Rio Grande do Sul. Lá, eles conseguiram constituir uma agricultura de pequena propriedade, periférica e complementar com o latifúndio pecuário. As terras que lhes couberam eram as desprezadas encostas das serras ou os solos pouco férteis, onde trabalho e engenho criaram uma economia baseada no fabrico do vinho, nos cereais e na carne de porco.

    Porém, em São Paulo, a experiência foi um pouco diferente. Importado para substituir o negro escravo, o italiano vinha plantar café como assalariado, e não para se tornar um pequeno proprietário. Logo ele descobriu o caminho das cidades, onde ia encontrar patrícios vindos para o ambiente urbano. Operários de fábrica, pedreiros, carpinteiros, artesãos, trabalhadores de todos os ofícios e pequenos comerciantes, esses imigrantes citadinos tinham vantagem numérica e não podiam ser dissolvidos no caldo ralo da população anterior.

    Ao chegar à cidade, o primeiro impulso do italiano era tentar reconstituir a comunidade rural de origem; recompor um ambiente familiar no qual a língua, os conterrâneos e os alimentos conhecidos lhe devolvessem os sentimentos de segurança e de unidade que haviam ficado para trás, além do Atlântico. O bairro era a colônia rural transposta para o contexto urbano, o núcleo de solidariedade grupal que fornecia proteção e tranquilidade durante o período de aprendizagem da língua e das coisas da terra. Assim, à medida que a integração transcorria, o bairro do imigrante passava a ser essencialmente transitório, etapa de maior ou menor duração na qual se reuniam forças para o salto da ascensão social.

    O mural, realizado em 1954 por Aldo Locatelli para a Prefeitura de Caxias do Sul (RS), ilustra a contribuição dos imigrados italianos para a "nova pátria brasileira" (imagem: Prefeitura Municipal de Caxias do Sul / Foto: Daniel Herrera)

    Em meus tempos de criança paulistana, nos anos 1940, ainda restava algo do período áureo de afirmação, no espaço urbano, da primeira geração ítalo-brasileira. Mas, em meio à vasta experiência humana dos milhões de italianos ou descendentes que viveram na cidade, meu horizonte é pobre e limita-se praticamente a 10 ou 20 ruas do bairro do Brás e a pouca coisa do Bexiga. Mesmo assim, alcancei a época dos cortiços, alguns de arquitetura fantástica, nos quais se apinhavam dezenas de famílias. De cada lado, fileiras de sobrados com dois ou três andares, separados por uma rua central de paralelepípedos. Lembro-me do espanto com que assisti à saída do enterro, dentre vários deles, de uma jovem recém-casada de 20 anos e os gritos lancinantes com que os parentes napolitanos despedaçavam imagens de barro dos santos fracassados e ingratos, surdos às promessas, negadores do milagre implorado.

    Meu mundo, até os 18 anos, era a quintessência do Brás tradicional. Nossa família, uma das últimas a deixar o velho sobrado patriarcal, vivia perto da Avenida Rangel Pestana, a algumas centenas de metros da Matriz do Bom Jesus do Brás, ao lado da famigerada Rua Caetano Pinto, numa travessa da Rua Carneiro Leão. Além dos sobrados e das precárias habitações populares dos cortiços, as ruas daquela zona eram ocupadas por fábricas, armazéns e cantinas, com queijos e linguiças pendurados na entrada como se fossem móbiles.

    Muitos dos pioneiros italianos já haviam se mudado para os bairros de maior prestígio, de onde vinham, às vezes, visitar os antigos vizinhos, e nutriam uma inveja secreta da vida simples do Brás, do jogo de bocce – bocha em italiano – nos fundos das cantinas, do café que se tomava com zambucca – licor de anis no dialeto meridional. Em lugar dos italianos desertores, os andaluzes, revolucionários antifranquistas, fundadores do clube de futebol de várzea, Os Onze Milicianos, erguiam a bandeira com o roxo espanhol da República. Ao lado das pizzarias, floresciam as casas em que se compravam, nas manhãs frias de névoa e garoa, os churros dourados para acompanhar o café com leite fumegante.

    Como as origens peninsulares eram diversas, alguns grupos eram exceções pela coesão interna, pelo grau de homogeneidade. Dois se destacavam nas vizinhanças. Um deles, nos fundos da Rua Caetano Pinto, era de gente de Caserta ou Pozzuoli – imediações de Nápoles –, quem sabe conservando ainda alguns genes dos atenienses que fundaram Parténope perto do vulcão. Eram devotos da Madona de Casaluce, em cuja honra ergueram uma capelinha singela pintada de anil enquanto esperavam os recursos para edificar a igreja definitiva. Para esse fim, todos os anos, engrinaldavam a rua de ponta a ponta, com arcos e bandeiras, em grandes quermesses.

    Do outro lado da Avenida Rangel Pestana, perto do Gasômetro e do Mercado, ficava o feudo dos bareses – como eram chamados aqueles nascidos na cidade de Bari – gente sisuda que desaprovava as gabolices e os hábitos tagarelas dos poucos sérios napolitanos. Esses bareses eram, na realidade, da região da Puglia, mais precisamente de Polignano a Mare, devotos de San Vito Mártire ou dos irmãos igualmente mártires Cosme e Damião, cujas bandeiras de seda coloridas em vermelho e verde saíam em procissão nas festas dos santos.

    Houve outros clãs similares, quase todos meridionais, como o dos calabreses do Bexiga, construtores da Igreja Madona da Acheropita. Minha avó paterna, Mariângela, era pugliesa de Barletta e, no seu ciumento localismo, reagiu indignada quando insinuei alguma afinidade entre sua terra e a dos desprezados habitantes de Polignano, a alguns quilômetros de distância. Mais tarde, quando li a história da conquista normanda de Bari e Barletta, algumas décadas após o ano 1000, é que entendi o porte escandinavo, os olhos de um azul aguado, os cabelos de ouro fino de minha impotente nonna. Quem sabe não seria ela parenta longínqua de um daqueles cruzados, que, como o gigantesco Boemundo, pareceram deuses louros às morenas princesas de Bizâncio?

    A casa da nonna, hoje demolida, era um espaçoso sobrado, com balcão, medalhão com as iniciais da família, balaustrada de ferro batido. Nos fundos, um vasto terraço em que verdejavam vasos, não de flores, mas de plantas úteis – tomates, pimenta malagueta, manjericão, louro, salsa. No fundo do terraço, um enorme forno oval de lenha, onde se assava, nos grandes dias, o cabrito do Natal ou da Páscoa.

    As comidas merecem, nesta evocação, um capítulo à parte. Os banquetes familiares das festas eram pantagruélicos, lembrando contos de Pirandello, com destaque para as massas laboriosamente feitas em casa, regadas por molhos escarlates com porpettas, braciólas (espécies de bifes rolê) recheadas e algumas folhas esmeralda de manjericão para levantar o aroma. Os doces, com massa de grão-de-bico, castanha e chocolate, eram, por dias a fio, mergulhados em tachos de mel. Os biscoitos eram de sal e erva-doce ou levíssimos, cobertos de glacê de açúcar e casca de limão. As carnes preferidas eram cabrito novo, cordeiro e leitão.

    Dentre as coisas marinhas, o polvo, que se comia na véspera de Natal. Legumes, sobretudo a berinjela recheada ao forno e coberta de queijo parmezzan, os pimentões vermelhos fritos, tomates em tudo e de todas as maneiras, os antipastos de berinjela, pimentão assado e abobrinha empapados de azeite e folhinhas de hortelã. Tudo temperado com as alici e azeitonas gigantes, orégano ou erva-doce, que se comia à sobremesa antes das tortas de Páscoa, recheadas de ricota e grãos de trigo cozidos em leite.

    Nesses termos gustativos, criou-se, nos bairros de imigração, uma nova tradição culinária, que veio juntar-se aos vários ramos regionais da cozinha brasileira. Não se trata apenas de uma abstrata cozinha italiana unificada, mas sim de variantes das mais diferentes regiões da Itália, que só em cidades como São Paulo podem ser encontradas reunidas num só lugar. Percebe-se que os pratos regionais preservaram-se intactos e acabaram por conferir à Pauliceia o status de centro de uma nova cultura do paladar. Diversa ao extremo, nela coexistem, lado a lado, junto às comidas de quatro continentes, rústicas cantinas meridionais, requintados restaurantes toscanos ou lombardos, pizzarias populares, e a competição aperfeiçoadora dos gelati e dos panetones.

    Por muito tempo, após deixar o Brás, pensei que as festas religiosas e os costumes que evoquei tivessem desaparecido, vítimas das obras do metrô e dos viadutos desfiguradores do bairro, que expulsaram desumanamente milhares de moradores. Há pouco, porém, quis comparar minhas memórias com os lugares da infância e retracei o itinerário das igrejas, centros da vida comunitária do Brás. Descobri então, com surpresa, que há em marcha uma espécie de renascimento das tradições do velho bairro, um “redespertar”, talvez, da consciência ítalo-paulistana após um ocaso de décadas.

    Na matriz do Bom Jesus do Brás, na bela igreja de Nossa Senhora da Paz, na qual me casei, vi, em toda a parte, sinais de vida e atividade. Contudo, o que mais me espantou foi na Rua Caetano Pinto, no ponto onde esperava encontrar uma fábrica no lugar da capelinha cor de anil, topar com a definitiva igreja de Casaluce, pequena mas decente. E não só se reataram alguns fios, como esse, que estavam partidos; novos também foram tecidos, como na igreja de São Januário, na Rua da Moóca, onde se inaugurou uma festa em honra de San Gennaro.

    Nem tudo foram flores nessa história, na qual não faltaram humilhações, explorações impiedosas do trabalho humano, desprezo ao carcamano, perseguições ao inimigo da Segunda Guerra Mundial, como a proibição do uso público da língua, a exigência xenófoba de abandono dos nomes em que figurasse a Itália. Muita gente traz até hoje as cicatrizes daquela época.

    Mas nada disso impediu que os italianos dessem muito à terra que os recebeu. Assim como aconteceu com a influência africana, a marca da Itália na alma brasileira não deve tanto ser procurada em fenômenos tópicos externos, de fácil identificação: cozinha, música, objetos de arte. O que conta, realmente, é o que ficou impregnado na essência do brasileiro, na fala do paulistano, no domínio do gesto, na energia criadora, na alegria diante do belo, no inconformismo ante a iniquidade social. Já não se pode mais definir a experiência humana do nosso povo sem levar em conta a componente italiana, ao lado da africana, indígena, portuguesa, alemã, dos demais povos que mesclaram seu sangue com o nosso.

    Para mim, a imigração italiana é, antes de tudo, a herança de um homem que nunca conheci, napolitano de velha cepa, Pietro Jovine, de olhos azuis, há muito extintos, que me fitam às vezes do fundo de um retrato amarelado. Soldado por dez anos na Sicília, cujo dialeto gostava de falar, ele militava na profissão evangélica de carpinteiro, mas seu sonho de fazer a América foi cedo destroçado por um acidente de trabalho, que, jovem ainda, deixou-o cego e paralítico. Resignado em seus anos finais, acabou sustentado pela mulher, Cristina, leve e diáfana, de cabelos prematuramente embranquecidos, atormentada pela asma na umidade dos invernos paulistas. Apesar do trabalho duro costurando sapatos, tarefa artesanal que se podia fazer em casa, ela mantinha uma nobreza, uma dignidade e um recato inigualáveis.

    Em meio a tudo isso e com o sacrifício da primogênita, os dois criaram as moças Concetta, Annunciata e Assunta; e os homens Francisco e Ignacio, todos educados na retidão, na devoção ao trabalho, no amor à cultura e à justiça. Esse homem que, medido por padrões humanos, não conheceu senão fracasso, pobreza e obscuridade, era meu avô materno. Quando penso na imigração, vejo-o como me descreveram minha avó e minha mãe, no instante em que, ao encontro de seu destino, partiu de Nápoles, que tanto amava e nunca mais haveria de rever. Enquanto seu navio se afastava lentamente do cais, meu avô Pietro assobiava do convés, e seu único irmão lhe respondia da terra. Anoitecia e aqueles sons agudos se tornavam fios tênues, frágeis, que se buscavam, se queriam amarrar à terra, até que a distância e o ruído das vagas os fizeram silenciar. É essa a imagem que trago dentro de mim e não se apaga. Terá valido a pena? Só a Deus cabe responder.

    A alegria de italianos e descendentes por um sucesso esportivo explode numa rua do Bexiga em 1982: o dia a dia brasileiro vivido sem perder a memória das raízes étnicas. (Imagem: Agência Fotograma / Foto: Emidio Luisi)

    Rubens Ricupero foi embaixador do Brasil em Washington, Genebra e Roma, ministro do Meio Ambiente e da Amazônia e ministro da Fazenda.

    Texto resumido e adaptado do artigo “Alcântara Machado: testemunha da imigração”. In: Revista Estudos Avançados 7 (18). São Paulo: USP, 1993.



    Saiba Mais - Bibliografia

    BANANÉRE, Juó. La Divina Increnca. São Paulo: Folco Masucci, 1966.
    CARELLI, M. Carcamanos e Comendadores. Os italianos em São Paulo: da realidade à ficção (1911-1920). São Paulo: Ática, 1985.
    MACHADO, Antônio de Alcântara. Brás, Bexiga e Barra Funda. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.