Quando as monarquias ibéricas assinaram o Tratado de Madri, em 1750, na tentativa de definir a fronteira entre as colônias na América, muitos guaranis das reduções administradas pelos jesuítas na Província do Paraguai sabiam escrever. Alguns deles eram até bilíngues: escreviam em guarani e espanhol. Este conhecimento contribuiu para as manifestações contrárias à decisão dos monarcas, especialmente porque os nativos reagiram por escrito. O resultado foi um conflito sem precedentes na região: a “Guerra Guaranítica”, rebelião colonial em defesa dos interesses indígenas.
Frutodas estratégias de conversão empreendidas pelos jesuítas, o alfabetismo indígena não era uma novidade, mas estava sempre relacionado ao ato de copiar ou reproduzir textos devocionais, a reescrita cristã. Somente em ocasiões excepcionais, como durante o conflito nas reduções (1752-1757), a habilidade letrada indígena foi reconhecida de maneira desvinculada da escrita religiosa. Uma batalha dos papéis antecedeu o enfrentamento armado na região.
No verão de 1753, Alejandro Mbaruari, líder indígena da redução de São Miguel, enviou uma carta, escrita em guarani, ao corregedor Pasqual Tirapare, na qual pedia que fosse impedida a passagem dos oficiais demarcadores, encarregados de fixar os limites entre os domínios ibéricos na América do Sul. A comunicação entre os índios e mesmo com as autoridades coloniais se deu por meio de duas modalidades de texto: os bilhetes e as cartas. Segundo a correspondência dos jesuítas, “voavam bilhetes” entre as reduções rebeladas.
Por sua escrita urgente e rápida, os bilhetes eram a forma preferida pelos guaranis para a comunicação com seus companheiros. As cartas desempenhavam uma função diplomática, de contactar a administração colonial, sendo importante instrumento de reivindicação e protesto no qual os guaranis expressavam sua opinião sobre os acontecimentos em curso. Munidos da escrita, esses nativos não parecem mais à mercê de mediadores. São agora homens letrados que têm nome e sobrenome.
A preservação dessas cartas demonstra o interesse das autoridades ibéricas em informar suas monarquias a respeito da oposição indígena. Afinal, esses escritos eram a prova material de que dispunham os comissários demarcadores, e mesmo os jesuítas, das manifestações autônomas de desobediência dos guaranis às ordens reais. Documentos como esses indicam a necessidade de se analisar a difusão da escrita nas reduções e, principalmente, chamam a atenção para a capacidade de ação desses índios.
Eduardo Santos Neumann é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor da dissertação “Práticasletradasguarani: produção eusosdaescritaindígena”(UFRJ, 2005).
Saiba mais
GARCIA, Elisa F.As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.
QUEVEDO, Julio. Guerreiros e Jesuítas na utopia do Prata. Bauru, SP: Edusc, 2000.
Internet
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
Vale o escrito
Eduardo Santos Neumann