Vale o escrito

Eduardo Santos Neumann

  • Quando as monarquias ibéricas assinaram o Tratado de Madri, em 1750, na tentativa de definir a fronteira entre as colônias na América, muitos guaranis das reduções administradas pelos jesuítas na Província do Paraguai sabiam escrever. Alguns deles eram até bilíngues: escreviam em guarani e espanhol. Este conhecimento contribuiu para as manifestações contrárias à decisão dos monarcas, especialmente porque os nativos reagiram por escrito. O resultado foi um conflito sem precedentes na região: a “Guerra Guaranítica”, rebelião colonial em defesa dos interesses indígenas.

    Frutodas estratégias de conversão empreendidas pelos jesuítas, o alfabetismo indígena não era uma novidade, mas estava sempre relacionado ao ato de copiar ou reproduzir textos devocionais, a reescrita cristã. Somente em ocasiões excepcionais, como durante o conflito nas reduções (1752-1757), a habilidade letrada indígena foi reconhecida de maneira desvinculada da escrita religiosa. Uma batalha dos papéis antecedeu o enfrentamento armado na região.

    Vinheta da ordem jesuítica Lisboa [XVIII] s. a. [Fundação Biblioteca Nacional]

    No verão de 1753, Alejandro Mbaruari, líder indígena da redução de São Miguel, enviou uma carta, escrita em guarani, ao corregedor Pasqual Tirapare, na qual pedia que fosse impedida a passagem dos oficiais demarcadores, encarregados de fixar os limites entre os domínios ibéricos na América do Sul. A comunicação entre os índios e mesmo com as autoridades coloniais se deu por meio de duas modalidades de texto: os bilhetes e as cartas. Segundo a correspondência dos jesuítas, “voavam bilhetes” entre as reduções rebeladas.

    Por sua escrita urgente e rápida, os bilhetes eram a forma preferida pelos guaranis para a comunicação com seus companheiros. As cartas desempenhavam uma função diplomática, de contactar a administração colonial, sendo importante instrumento de reivindicação e protesto no qual os guaranis expressavam sua opinião sobre os acontecimentos em curso. Munidos da escrita, esses nativos não parecem mais à mercê de mediadores. São agora homens letrados que têm nome e sobrenome.

    A preservação dessas cartas demonstra o interesse das autoridades ibéricas em informar suas monarquias a respeito da oposição indígena. Afinal, esses escritos eram a prova material de que dispunham os comissários demarcadores, e mesmo os jesuítas, das manifestações autônomas de desobediência dos guaranis às ordens reais. Documentos como esses indicam a necessidade de se analisar a difusão da escrita nas reduções e, principalmente, chamam a atenção para a capacidade de ação desses índios.

     

     

    Eduardo Santos Neumann é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor da dissertação “Práticasletradasguarani: produção eusosdaescritaindígena”(UFRJ, 2005).

     

    Saiba mais

    GARCIA, Elisa F.As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2009.

    QUEVEDO, Julio. Guerreiros e Jesuítas na utopia do Prata. Bauru, SP: Edusc, 2000.

    Internet

    Revista do Instituto Humanitas Unisinos

    www.ihuonline.unisinos.br/index.php?secao=348