A vinda de judeus para o Brasil geralmente está associada ao grande número de cristãos-novos que buscaram o país entre os séculos XVI e XVIII ou às décadas de 1920 e 1930, quando eles vinham da Europa Central e Oriental fugindo de perseguições e do nazismo. Mas no início do século XIX, com a abertura comercial decorrente da vinda da Corte para o Brasil, houve uma grande imigração judaica para o país.
Na época, foi necessário enfrentar a questão do status dos estrangeiros não católicos que, por força de seus negócios, passariam a frequentar os mercados brasileiros. A Inglaterra, principal parceira comercial do reino e de população majoritariamente protestante, preocupava-se em garantir liberdade de culto para seus súditos. Foi por isso que, no artigo XII do tratado comercial de 1810, ficou estabelecido que “os vassalos de Sua Majestade Britânica (…) não serão perturbados, inquietados, perseguidos e molestados por causa de sua religião”. Este decreto nem de longe igualava outras religiões ao catolicismo – suas capelas tinham que ser discretas, semelhantes a casas de habitações, e não se podia fazer uso de sinos. Mas, como foi mais tarde confirmado pela Constituição do recém-independente Império do Brasil, ele estabeleceu a liberdade religiosa no país.
Seus efeitos não tardaram a aparecer: ainda nas primeiras décadas do século XIX, comerciantes judeus ingleses e franceses se mudaram para o Rio de Janeiro. O mais conhecido deles, o francês Bernard Wallerstein, dono de uma casa de moda feminina que também vendia calçados, charutos, joias e vinhos, era o maior fornecedor da Casa Imperial, figurando nas memórias de Joaquim Manuel de Macedo como o “Carlos Magno da Rua do Ouvidor”. Mais para o fim do século, a este grupo vieram se juntar judeus da região da Alsácia-Lorena, à época disputada em guerras entre França e Alemanha.
Como resultado das ondas migratórias do século XIX, os judeus passaram a adquirir certa visibilidade na sociedade brasileira. O próprio imperador D. Pedro II era conhecido por seu interesse pelo hebraico. Além disso, o escritor João do Rio os descreveu em uma de suas crônicas de 1904, citando as duas sinagogas existentes no Rio de Janeiro, a Associação Israelita Universal, dos alsacianos, e a Shel Guemilut Hassadim, dos marroquinos. Espantando-se com a diversidade que havia encontrado, o cronista escreveu: “Havia gente morena, gente clara; mulheres vestidas à moda hebraica de túnica e alpercata, mostrando os pés, homens de chapéus enterrados na cabeça, caras femininas de lenço amarrado na testa e crianças lindas”.
A imigração de judeus franceses e ingleses, no entanto, não foi o mais importante movimento migratório para o Brasil no período imperial. Em meados do século XIX, judeus marroquinos começaram a cruzar o Oceano Atlântico em busca de melhores condições de vida e da liberdade religiosa de que não dispunham em seu país de origem. A seu favor, tinham o conhecimento do espanhol e do português, por serem descendentes diretos das comunidades expulsas da Península Ibérica.
Alguns desses marroquinos dirigiram-se para Pernambuco e para a Bahia, como fez Isaac Amzalak, comerciante que sentou praça em Salvador. Sua filha foi tema de platônicos versos do vizinho Castro Alves, que a ela se dirigia como “linda, sedutora Hebréia.../ Pálida rosa da infeliz Judéia”.
Mas a grande maioria dos imigrantes foi mesmo para a Amazônia. Embora existam poucos dados demográficos sobre o assunto, sabe-se que estes judeus chegavam às centenas. No início, estabeleceram-se nos confins da selva amazônica ou em cidades ribeirinhas. Depois, em Manaus e Belém, a primeira cidade a sediar uma instituição judaica no Brasil independente, a sinagoga Eschel Abraham, em 1824.
A maior visibilidade dos judeus e a formação de comunidades como a de Belém não foram suficientes para a criação de instituições capazes de dar conta da organização da vida judaica nas cidades brasileiras. Mesmo no Rio de Janeiro, capital do Império, não existiam condições consideradas mínimas para o exercício da religião, como a presença de um recitador de preces, que por vezes podia exercer as funções de rabino, e de um shochet, responsável pelo abate de animais segundo a tradição judaica.
O imigrante Isey Levi chegou a ter registrado por escrito um episódio que exemplifica as dificuldades de se praticar o judaísmo naquela época. Em carta dirigida ao rabino-chefe de Londres, solicitando instruções para a realização do casamento de sua irmã, pergunta se poderia, ele próprio, conduzir a cerimônia, já que não havia quem celebrasse a união, como um rabino. Em 30 de junho de 1839, o sacerdote responde que não vê com bons olhos o estado de coisas no Rio de Janeiro: “Por ocasião da festa de casamento, depois de ter pronunciado as bênçãos prescritas e agradecendo ao Deus de seus pais pela graça de ter-nos dado os mandamentos, irão sentar-se para saborear comida proibida pelos seus mandamentos. Isto é uma flagrante violação da Lei, o que muito me doeria se fosse inevitável”.
Apesar dos lamentos do rabino, ele manda os documentos necessários e a cerimônia é realizada. Ao que parece, esta é a atitude predominante entre os judeus observantes da religião que habitam cidades como o Rio de Janeiro nesse período: mantêm as tradições na medida do possível e de suas próprias necessidades, adaptando-as às condições da sociedade em que viviam.
Situações como estas indicam que, apesar das restrições, os judeus parecem ter vivido no Brasil do século XIX sem maiores problemas ou incômodos. Estes, que certamente existiam, tinham menos impacto em suas vidas do que as situações vividas pelos judeus europeus no mesmo período. Seria a França de fins do século XIX que presenciaria o caso Dreyfus, o maior erro judiciário da história francesa, no qual um oficial francês judeu foi acusado de espionagem, e na Rússia, desde a década de 1880, os judeus sofreriam ataques contínuos em suas aldeias, os famosos pogroms. Não foi à toa que de lá, nas décadas seguintes, saíram milhões de judeus em busca de um destino melhor nas Américas.
Nesse quadro, as dificuldades cotidianas no exercício da religião vivenciadas pelos judeus brasileiros parecem problemas menos graves. Estavam longe de inviabilizar a presença judaica no país ou a constituição de comunidades, que não tardaram a ser organizadas, à medida que o número de imigrantes começou a aumentar. Assim, se é verdade que a tão proclamada liberdade religiosa do Império brasileiro tinha suas restrições, nem por isso o Império brasileiro deixou de receber seus súditos judeus.
Keila Grinberg é professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e organizadora de Os judeus no Brasil: inquisição, imigração, identidade. (Civilização Brasileira, 2005).
Saiba Mais - Bibliografi
BLAY, Eva. “Judeus na Amazônia”, in SORJ, Bila (org.) Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
FAUSTO, Boris. Fazer a América: A imigração em massa para a América Latina. São Paulo: USP, 1999.
ROSENBLATT, Sultana Levy. “Como viemos parar na Amazônia”, in Morashá, nº 30, setembro de 2000.
WOLFF, Egon e Frieda. Os judeus no Brasil Imperial. São Paulo: Centro de Estudos Judaicos/USP, 1975.
Liberdade com restrições
Keila Grinberg