Seleção questionável

Fábio Koifman

  • Na Europa, crescia consideravelmente o número de judeus que saíam do continente em busca de refúgio em outros países. A década de 1930 foi marcada pela crise econômica mundial de 1929 e pela afirmação de alguns regimes fascistas, como o nazismo – despertando em muitos judeus o temor de perseguições. Com o início da Segunda Guerra Mundial (1939) e as expressivas vitórias militares alemãs, a situação piorou ainda mais.

    Enquanto isso, no Brasil, durante o primeiro governo de Getulio Vargas (1930-1945), intensificaram-se as políticas restritivas à imigração. Essas medidas de controle da entrada de estrangeiros atingiram diretamente os judeus e eram apresentadas ao público como fundamentais para reforçar os valores e ideais de nação.

    Já em um discurso feito em 1930, quando ainda era candidato à Presidência, Vargas afirmou: “Durante muitos anos, encaramos a imigração exclusivamente sob os seus aspectos econômicos imediatos; é oportuno entrar a obedecer ao critério étnico, submetendo a solução do problema do povoamento às conveniências fundamentais da nacionalidade”.

    Naquela época, era intenso o debate dos setores da elite sobre o tipo de imigrante considerado desejável para encher os imensos vazios do território nacional e contribuir para o ideal de formação do povo brasileiro. Nesse contexto, as ideias eugenistas ganharam expressivo espaço. Seguindo essa lógica, o Estado deveria fazer intervenções para melhorar as gerações futuras. Para isso, foram estabelecidos critérios e valorações de características humanas para produzir a mais “adequada” seleção de elementos reprodutivos. No grupo de pessoas consideradas ideais para as futuras gerações de brasileiro estavam portugueses e suecos. No grupo dos inadequados, os indesejáveis, foram incluídos os orientais, negros, indígenas, judeus, todos os “não brancos”, assim como os portadores de deficiências físicas congênitas ou hereditárias, os doentes físicos ou mentais, além de homens e mulheres fora da idade reprodutiva.
    A Constituição de 1934 trouxe as primeiras restrições. Naquele momento, o alvo foram os japoneses: um sistema de cotas diminuiu drasticamente o número de imigrantes vindos de seu país.

    Como naquele período os judeus imigravam de várias nações, com a vigência do novo sistema, israelitas de diferentes origens entraram no Brasil dentro das cotas de suas respectivas nacionalidades. A partir de 1935, ano do Levante Comunista, o governo Vargas intensificou o controle policial interno dos estrangeiros e determinou que a legislação relacionada à entrada de imigrantes fosse aprimorada.

    A primeira das instruções remetidas às representações diplomáticas e consulares brasileiras no exterior a respeito da concessão de visto a judeus (as chamadas circulares) foi emitida antes da decretação do Estado Novo, em 7 de junho de 1937. No período da instauração do regime ditatorial de Getulio Vargas, o assunto ganhou uma dimensão ainda maior. A agilidade na tomada e na aplicação das decisões – decorrentes do período autoritário – tornou mais difícil a vinda de estrangeiros para o Brasil.

    Vargas considerava ideal a entrada de portugueses. O “elemento português” era apontado como “matriz” de nossa composição étnica, cultural e religiosa, e, portanto, europeia. Por outro lado, a restrição se estendia a vários outros povos, inclusive europeus. O critério utilizado era a maior ou menor capacidade de fusão, no sentido de propiciar casamentos desses novos imigrantes com a população aqui já residente, descente de africanos, indígenas ou de ambos e proporcionar, a partir dessa miscigenação, novas gerações superiores do ponto de vista preconceituoso da eugenia. Os judeus, por exemplo, eram considerados “inassimiláveis”. Os dirigentes do governo classificavam-nos como indesejáveis, pois acreditavam que os israelitas não tinham tendência a se miscigenarem com a população não branca brasileira.

    Tudo isso mostra a diferença entre o racismo, o preconceito e a presença de valores próprios da eugenia na legislação e na prática seletiva do Estado Novo em relação ao imigrante. Essa medida contrasta com o relativo tratamento sem discriminação que o Estado dispensava aos homens de todas as etnias já residentes no Brasil. 

      Dois motivos podem ser considerados a base para que Vargas mantivesse liberada a entrada de portugueses nesse período. A primeira razão dizia respeito à conduta política. A maioria dos potenciais imigrantes portugueses era composta de gente de origem modesta e de limitada instrução técnica e cultural, e ainda proveniente da ditadura salazarista. Em última análise, Vargas acreditava que esses imigrantes não eram portadores de “ideias dissolventes”, diferentemente de muitos intelectuais recém-imigrados da Alemanha, da França, da Áustria, etc. Estes, em poucos meses no Brasil já estavam publicando artigos e produzindo reflexões sobre os mais diferentes temas junto aos brasileiros. Era algo que tenderia a fugir do controle do Estado Novo e, de certa forma, era visto como potencialmente perigoso para uma ditadura.

    A segunda razão estava na continuidade da política do branqueamento. Os chamados “quistos étnicos” eram indicações de que outras correntes imigratórias de europeus não tinham, de acordo com a terminologia da época, a mesma tendência à miscigenação que os portugueses. Vargas e setores das elites brasileiras estavam convencidos de que a composição étnica “não branca” de boa parte dos brasileiros explicaria o atraso e as dificuldades do país. Consideravam também que os portugueses, aparentemente, casavam-se mais com os “não brancos” aqui residentes. Dessa forma, seriam considerados imigrantes ideais.

    De qualquer forma, foi possível a continuidade de uma vida normal para os estrangeiros e seus filhos no Brasil, mesmo os de origens étnicas indesejáveis pelos critérios seletivos relacionados aos novos imigrantes. As restrições e o preconceito expressos na legislação e nas políticas imigratórias não foram transpostos para atos discriminatórios. O Estado brasileiro não desejava “reproduzir” no Brasil qualquer tipo de racismo, especialmente por considerá-lo elemento desagregador nacional, além de, potencialmente, tornar-se um fator de dificuldade no estabelecimento de casamentos interétnicos, no contexto do ideal do branqueamento. 

    Apesar de todo o aparato burocrático e legal estabelecido com o objetivo específico de restringir a entrada de judeus no Brasil ao longo do Estado Novo, o país recebeu cerca de nove mil judeus no período considerado crítico, entre 1938 e 1941. Boa parte dessas entradas esteve relacionada a três fatores principais. O primeiro foi a brecha estabelecida nos últimos meses de 1938, possibilitando a concessão de vistos a parentes até segundo grau de judeus já residentes no Brasil. O segundo foi a boa vontade de alguns diplomatas brasileiros para conceder vistos mesmo à revelia das instruções, dos quais o mais expressivo foi o embaixador na França, Luiz Martins de Souza Dantas. Por fim, judeus que lograram entrar no Brasil não evidenciando a condição de israelitas.

    Considerando o montante de centenas de milhares de judeus saídos da Europa na época e o enorme contingente que bateu às portas das representações brasileiras naquele continente e recebeu visto, o número de imigrantes israelitas foi relativamente pequeno. O total de judeus que veio para o Brasil não superou os recepcionados pela Argentina e foi mais de dez vezes inferior ao número de refugiados que foram para os Estados Unidos no mesmo período.   

    Fábio Koifman é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor de Quixote nas trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo. (Record, 2002).

    Saiba Mais - Bibliografia

    BARROS, Orlando de. “Preconceito e educação no Governo Vargas (1930-45). Capanema: Um episódio de intolerância no Colégio Pedro II”. Rio de Janeiro: Cadernos avulsos da biblioteca do professor do Colégio Pedro II, 1987.

    LESSER, Jeffrey H. O Brasil e a Questão Judaica: Imigração, diplomacia e preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
    MILGRAM, Avraham. Os Judeus do Vaticano. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
    SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

    Saiba Mais - Filme

    “Passaporte húngaro”, de Sandra Kogut.