Formação de uma imperatriz

Sonia Sant’Anna

  • Vista atual do Palácio de Schönbrunn em Viena. O local foi frequentado por Leopoldina em sua juventude, no começo do século XIX. (Foto: Cristina Romanelli)Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena, arquiduquesa d’Áustria, nasceu em Viena, em 22 de janeiro de 1797. Era bisneta de Maria Teresa, a Grande, e sobrinha-neta de Maria Antonieta, rainha dos franceses.
     
    Sua infância e juventude seriam vividas sob os sobressaltos de sucessivas guerras. Era ainda bebê quando Napoleão Bonaparte (1769-1821) infligiu as primeiras derrotas aos exércitos austríacos. Duas vezes seria obrigada a fugir de Viena a ponto de ser ocupada pelo imperador dos franceses. E, invariavelmente derrotado, seu pai, Francisco II (1768-1835), imperador do Sacro Império Romano – que compreendia a atual Alemanha, Áustria, Suíça, República Tcheca, Bélgica, Países Baixos, parte da Polônia, da França e da Itália – era obrigado a ceder parte de seus territórios. Em 1804, percebendo que o Sacro Império se esfacelava, decidiu conservar apenas o título de Francisco I, Imperador da Áustria e Rei da Boêmia e da Hungria.
     
    Mas longe do troar dos canhões, no lar de Francisco e Maria Teresa de Bourbon Nápoles, segunda esposa de Francisco e mãe de Leopoldina, a vida corria tranquila. Ele, de gostos simples, preferia os prazeres da vida em família a um cerimonial faustoso de corte. Poliglota, culto e muito religioso. Ela, bonita, inteligente e alegre, sempre grávida – teve 12 filhos em 17 anos – assim mesmo encontrava ânimo para tocar piano, cantar no coro do compositor Haydn, promover festivais e organizar uma orquestra particular em que tocava o próprio imperador. Amava os bailes. 
     
    Entretanto, não reinava a futilidade no lar dos Habsburgo. Os jovens príncipes e princesas eram educados segundo os princípios, severos mas avançados para a época, do avô Leopoldo II (1747-1792), que dizia que “Os príncipes devem convencer-se em primeiro lugar da igualdade entre os homens, de que todos têm os mesmos direitos e devem sacrificar àqueles toda a sua existência... quando um dos nossos herda um trono, não se trata, como outrora, de uma propriedade adquirida, mas sim de um cargo, uma pesada incumbência”. Eram ensinados a desprezar a mentira, a praticar a caridade e a tratar todos com cortesia, independente da classe social, a seguir estritamente os ensinamentos da Igreja e, acima de tudo, a obedecer aos pais e a sacrificar os próprios desejos às necessidades do Estado. 
     
    O retrato do chanceler austríaco Klemens von Metternich, 1822. Ele foi o grande responsável pela arquitetura do casamento de Leopoldina e D. Pedro. “Nossas princesas não estão acostumadas a escolher seus maridos segundo o coração”, dizia. (Foto: Reprodução / Original do Museu de Arte Metropolitan)Leopoldina, loura, de pele alva e olhos azuis, era viva e brincalhona, voluntariosa até onde lhe permitia a rigidez de sua educação. Sua vida se dividia entre os palácios de Hoffburgo, o de Schönbrunn, que rivalizava em luxo com Versalhes, e o mágico palácio de férias, Laxemburgo, com seus rios, lagos, ilhas e grutas. Às princesas era designada uma aia – substituída por uma camareira quando se aproximavam da idade adulta. A essas senhoras cabia ensinar-lhes a etiqueta da corte e acompanhá-las em público. Cada princesa tinha também a seu serviço uma açafata, espécie de ama ou criada. Leopoldina dedicava grande afeto a Francisca Annony, sua ama, que a acompanharia em seus primeiros meses no Brasil.
     
    Professores vinham diariamente instruir os príncipes e as princesas, sob a supervisão exigente da imperatriz, que não hesitava em deixar de castigo quem não cumprisse as tarefas. Bailados, atuar em peças teatrais, tocar instrumentos diante de uma plateia eram atividades de que participavam com frequência, para que perdessem a timidez e se acostumassem a estar diante dos olhos do público.
     
    Em 1805, essa plácida rotina foi rompida pelo avanço de Bonaparte. A família imperial se viu obrigada a fugir, e Napoleão se instalou em Schönbrunn. A Áustria e sua aliada, a Rússia, foram derrotadas em Austerlitz, e as condições para a paz, humilhantes para a Áustria, que perdeu mais territórios. Em agosto de 1806 deu-se a dissolução definitiva do Sacro Império Romano. 
     
    Em 13 de abril de 1807, um dia após dar à luz uma princesa que não lhe sobreviveria, faleceu em Viena a imperatriz Maria Teresa, aos 35 anos. Menos de um ano depois, Francisco I se casou com a prima Ludovica d’Este, de 20 anos. Apesar da extrema juventude, tratava-se de uma mulher extraordinária, bela, elegante, muito culta, dotada de grande força de vontade. Não tendo filhos, dedicou-se aos enteados e teve profunda influência sobre Leopoldina.
     
    Professores se sucediam diariamente depois da missa, celebrada às 8h30 da manhã: alemão, latim, francês, italiano, história, desenho, matemática, música e religião. E, preferidas por Leopoldina, mineralogia, botânica, astronomia, física. Pelos poucos desenhos de Leopoldina que restaram, percebe-se que era talentosa. Na música foi também boa aluna. Era dispersiva, dedicando-se com maior afinco ora a uma, ora a outra atividade, o que impedia que se aprofundasse em qualquer uma delas. Além do estudo, parte do tempo era reservada a caminhadas, fazer ou receber visitas, idas ao teatro, concertos e museus.
     
    Em maio de 1809 a vida familiar novamente se desorganiza. Em guerra contra os franceses, as tropas austríacas vencem a batalha inicial, mas em julho são derrotadas em Wagram. Bonaparte mais uma vez se aproxima de Viena, obrigando Ludovica a fugir. Em Eger, na Boêmia, instala-se com os enteados numa hospedaria pouco confortável e já lotada de refugiados. Leopoldina faz sua primeira comunhão. A imperatriz, que pouco tempo antes escrevia ao marido que tivera necessidade de castigar severamente Leopoldina por seu mau comportamento, agora louva sua sensatez, sua devoção e sua aplicação aos estudos. 
     
    Finda a guerra, sabem com horror que o preço a pagar pelo armistício será mais pesado que a perda de territórios. Bonaparte, que conseguira do Papa a anulação de seu casamento, exige a mão de Maria Luiza. O novo primeiro ministro, Klemens von Metternich (1773-1859), tranquiliza os emissários franceses que vêm pedir a mão da arquiduquesa: “nossas princesas não estão acostumadas a escolher seus maridos segundo o coração”, e aconselha o imperador a ceder, enquanto refazem as forças para novamente enfrentar aquele que as monarquias europeias intitulam “o monstro”, “o Anticristo”, “a hidra”.
     
    Casamento religioso de Napoleão Bonaparte e Maria Luísa de Habsburgo no Salão francês Carré do Louvre, em 02 de abril de 1810. (Foto: Reprodução / Original do Museu do Palácio de Versailles)Foi um momento difícil para Francisco I, obrigado a ceder a filha ao destruidor de seu império, para Maria Luiza, que amava o tio Francisco d’Este, e para Leopoldina, que perdia a companhia da irmã predileta que abria mão de um casamento por amor para se unir àquele que haviam aprendido, desde a infância, a odiar. Encontra alívio nos livros e nos estudos, que a ocupam cada vez mais e, principalmente, na religião. É admitida na Ordem da Cruz da Estrela, uma ordem religiosa de senhoras nobres que prometiam dedicar suas vidas à oração, à caridade e a cultivar a modéstia, tanto no trajar quanto em suas atitudes.
     
    Ludovica, de saúde frágil, é aconselhada a fazer uma estação de águas em Karlsbad. Leva consigo Leopoldina, que parecia precisar também das águas curativas, tão triste se mostrava. No ambiente informal de um balneário, Leopoldina convive com jovens de sua idade e, acompanhada de sua camareira, participa de passeios pelos arredores. Hospedado no mesmo hotel está o poeta von Goethe que, apresentado a Ludovica, sente-se agradavelmente surpreso ao constatar que se trata de uma mulher dotada de inteligência superior e sensibilidade. A jovem imperatriz e o velho poeta mantêm encontros frequentes em que Goethe lê alto obras suas e de outros autores germânicos. Leopoldina, presente em muitas dessas ocasiões, tem o gosto despertado para esse gênero de literatura.
     
    Em Viena, levam-na aos arredores da cidade, para visitar castelos, museus, fábricas, bibliotecas. Na volta, deve apresentar um relatório descrevendo o que viu. 
     
    Em 1812 Francisco I e Napoleão se encontram em Dresden. Terminada a conferência, Napoleão concede férias a Maria Luiza para que visite a família, que se encontra em Praga, e Leopoldina revê, depois de dois anos de ausência, a irmã bem-amada. Ao se despedirem, não imaginam que estarão juntas muito antes do que podem supor.
     
    No mesmo ano, após derrotar a Rússia na batalha de Borodino, Napoleão é obrigado a se retirar: os russos incendiaram Moscou. As tropas francesas se arrastam de volta para casa em meio ao inverno rigoroso, deixando atrás de si um rastro de cadáveres congelados. A Rússia se alia à Prússia, à Inglaterra e à Suécia para enfrentar Bonaparte. A Áustria não deixa de aderir. Após uma vitória em Dresden, a sorte parece sorrir ao imperador francês. Mas vai sendo rechaçado sucessivamente e, após a derrota final em Leipzig, abdica e parte para o exílio em Elba. Pouco depois Maria Luiza, sem o título de imperatriz, vem para a casa dos pais com o filhinho.
     
    Os monarcas da Europa se reúnem em Viena, para redefinir fronteiras e alianças, no chamado Congresso de Viena, que traz alguns aborrecimentos a Leopoldina: “a gente está de pé desde de manhã cedo... em trajes de gala, e passa o dia em cumprimentos e ociosidades”, escreveu a princesa. Sem que o suspeitem os convidados, Ludovica, muito doente, sofre dores atrozes, mas é soberbamente vestida e com um sorriso nos lábios desempenha seu papel de anfitriã. Terminado o Congresso, segue com o marido para a Itália, na esperança de que o clima ameno lhe seja útil. Mas vem de Verona o aviso de seu falecimento.
     
    Durante uma estada em Baden, Leopoldina conhecera o diplomata português Navarro de Andrade, que a considera a noiva ideal para Pedro, herdeiro do trono português, no momento vivendo no Brasil com a família, que ali se refugiara de Bonaparte. Ao ver o retrato de Pedro pintado num medalhão cercado de brilhantes, a princesa se apaixona.
     
    O Brasil é longe, a travessia marítima perigosa, mas Metternich aponta a Francisco I as vantagens políticas desse casamento. No mesmo dia em que o imperador se casa pela quarta vez, com uma princesa da Baviera, o noivado de Leopoldina é anunciado.
     
    Sonia Sant’Anna é autora de Leopoldina e Pedro I – a vida privada na corte (Zahar, 2004).
     
    Saiba Mais
     
    GRAHAM, Maria. Correspondência com a Imperatriz Leopoldina e escorço biográfico de D. Pedro I. São Paulo: Editora Itatiaia, 1997.
    OBERACKER Jr., Carlos H. A Imperatriz Leopoldina, sua vida e sua época. S.l: Editora Conselho Federal de Cultura, 1973.