Uma Habsburgo nos trópicos

Clóvis Bulcão

  • Apesar da educação primorosa, a arquiduquesa do império austríaco, filha do imperador Francisco II (1768-1835), nunca foi objeto de grandes esperanças em seu país natal. Ninguém poderia imaginar que ela viesse a construir aqui a história que conhecemos. Duas gerações antes da princesa Isabel comandar os destinos do país e dois séculos antes de Dilma Rousseff vislumbrar ser presidente, a austríaca Carolina Josefa Leopoldina Francisca Fernanda de Habsburgo-Lorena, que se tornou aqui a imperatriz Leopoldina, foi a primeira mulher no Brasil a ter reconhecido o seu papel político.
     
    Tanto ela como os irmãos mais próximos, Fernando e Maria Luisa, tiveram como “tutor” o nobre diplomata príncipe de Metternich (1773-1859), conhecido por ser “implacável” em suas decisões. Os jovens da casa de Habsburgo levavam uma vida espartana. Alvorada às 7h30, missa às 8h30 e, na sequência, aulas de línguas (latim, francês e italiano), matemática, literatura, história, religião e ciências naturais. Eram frequentes as excursões de estudos: museus, jardins botânicos, fábricas e campos agrícolas. Era uma leitora voraz. Foi ainda bem jovem admitida na Ordem da Cruz d’Estrela, instituição da aristocracia austríaca que, entre outras coisas, pregava a prática de obras de assistência espiritual, difundindo valores como a fé e a honestidade. 
     
    Apesar de tudo, segundo o historiador Walter Tritsch, biógrafo da família imperial austríaca, Metternich não via com bons olhos a educação dos filhos do imperador. Sobre Leopoldina nunca escondeu sua opinião e em carta a Francisco II disse, “cá entre nós, é uma criança que eu, se fosse pai, bateria”.
     
    Foi após o casamento de sua irmã, Maria Teresa, com Napoleão Bonaparte que Leopoldina passou a se dedicar mais às coleções, mania herdada do pai. Colecionava moedas, conchas, flores, plantas e minerais. Esses objetos, anos mais tarde, formariam o acervo inicial do atual Museu Nacional. 
     
    No campo da política, aos 17 anos, Leopoldina demonstrou ser uma observadora atenta do Congresso de Viena: criticou o comportamento do rei de Wurtemberg, pois não respeitava o cerimonial austríaco, e admirou a franqueza do rei da Dinamarca, que falava franca e educadamente o que pensava. Mas a essa altura seu destino parecia selado.
     
    Quando o diplomata português e ministro plenipotenciário do Império do Brasil junto à corte da Áustria, Rodrigo Navarro de Andrade, aventou a possibilidade de casamento entre o herdeiro de Portugal e a jovem austríaca, Metternich logo se interessou pelo caso. Apesar de Portugal ser visto como um reino de terceira grandeza, a opção era bem vantajosa. O governo austríaco entendeu que haveria a chance de ter ascendência sobre um gigantesco império, com colônias espalhadas pelo mundo, sendo que uma delas, o Brasil, com enormes possibilidades futuras. 
     
    O imperador da Áustria ainda se preocupou em saber quem era o noivo e chegou a hesitar. Circulavam notícias de que D. Pedro, além de ser epilético, não gozava de boa moral. Mas as preocupações de Francisco II acabaram sendo atropeladas pela decisão diplomática de unir a casa de Habsburgo com a de Bragança. Já a futura imperatriz, mesmo sabendo dos boatos, em carta à irmã, revelava todo o seu otimismo: “elogia-se toda a família, que se diz cheia de bom senso e de qualidades nobres”. 
     
    Leopoldina embarcou no porto de Livorno em 13 de agosto de 1817, trazendo cerca de 40 caixas da altura de um homem, contendo, além de seu enxoval, sua biblioteca, suas coleções e os presentes para a casa real. Sua comitiva era composta de algumas damas da corte, uma camareira-mor, um mordomo-mor, seis damas, quatro pajens, seis nobres húngaros, seis guardas austríacos, seis camaristas, um esmoler-mor, um capelão, um secretário particular, um médico, um mineralogista e o professor de pintura.
     
    Antes de conhecer sua nova família e a cidade em que viveria, ficou maravilhada com a primeira visão: “A entrada do porto é sem par, e acho que a primeira impressão que o paradisíaco Brasil faz a todo estrangeiro é impossível descrever com qualquer pena ou pincel: basta que lhe diga: a Suíça unida ao mais belo e ameno céu”, contou ao pai através de carta. Ainda faltava conhecer sua nova família. 
     
    Segundo o testemunho da condessa de Kunburg, assim foi o primeiro encontro, ocorrido ainda a bordo do barco que trouxera a arquiduquesa, “o rei [dom João] apresentou à arquiduquesa o esposo, seu filho, que lhe entregou o presente de noivado, sendo uma caixa de ouro cheia de ricos brilhantes lapidados”. “Ele [Pedro] estava sentado em frente da nossa princesa, os olhos baixos, levantando-os furtivamente sobre ela de tempo em tempo, e ela fazia o mesmo; neste dia ela estava verdadeiramente bem”.
     
    Nesse momento, Pedro, com 19 anos, e Leopoldina, com 20, já estavam casados. O que faltava era a consumação. Na família real de Portugal, respeitando uma tradição do Antigo Regime, esse fato acontecia quase publicamente e foi assim descrito por uma das damas da noiva: “a rainha e todas as princesas assistiram à sua toilette de noite: eu fui obrigada a despi-la na cama e esperar até que o príncipe ficasse a seu lado na cama. Então, felizmente, permitiram que saísse”.
     
    Doravante, a jovem Leopoldina teria que aprender a conviver com uma Corte partida em três, o partido de D. João, o da sogra Carlota Joaquina e o do marido Pedro. De todos os seus novos parentes o de trato mais fácil parece ter sido o sogro. Sentimento assim registrado, em carta ao pai, logo após a sua chegada: “Amo e estimo o meu sogro como a um segundo pai, e acho que ele se parece muito com o Senhor, caríssimo papai, no que toca à bondade de coração e ao amor ao seu povo”.
     
    Vista do Campo de Santana, no Rio de Janeiro, em gravura de Franz J. Frübeck, integrante da missão austríaca que veio ao Brasil (1817). (Foto: Reprodução)
     
    Já em relação à espanhola Carlota Joaquina, o sentimento era diferente: “A sua conduta (...) é vergonhosa e desgraçadamente já se percebem as consequências tristes nas suas filhas mais novas que têm uma educação péssima e sabem aos 10 anos de idade tanto como as outras que são casadas”.
     
    A opinião sobre o marido, Pedro, oscilava. Em carta à irmã Maria Luisa, ela revelava que o convívio com o esposo nem sempre era fácil: “Diz ele tudo o que pensa, e isso com alguma brutalidade; habituado a executar sempre a sua vontade, todos devem acomodar-se a ele; até eu sou obrigada a admitir alguns azedumes”.
     
    Ao mesmo tempo, Leopoldina tinha que lidar com outro grande inconveniente: o comportamento libidinoso do esposo. Logo que chegou ao Rio de Janeiro, Pedro estava apaixonado pela dançarina francesa Noêmi Valency. A presença da arquiduquesa não foi suficiente para acabar com o romance. Era obrigada a acompanhar o marido à residência de um membro da corte, Pedro José Causper, onde era entretida pelos donos da casa enquanto ele sumia com a amante.
     
    Leopoldina foi obrigada a conviver com o clima de permanente intriga entre os cortesãos e os membros da própria família Bragança. Carlota batia no filho Pedro em público. D. João não confiava no herdeiro de seu trono. O rei e Carlota Joaquina nem moravam juntos: ele, na Quinta da Boa Vista, e ela, no longínquo bairro de Botafogo. Tudo isso era motivo de muita tensão para a arquiduquesa: “Seria muito feliz, caso não tivesse que lutar contra intrigas e outras contrariedades”. Era o fim da percepção de que estava no paraíso terrestre: “Você supõe que o Brasil seja um trono de ouro; mas ele é um jugo de ferro”.
     
    Após 1820 tudo ficou ainda mais difícil: o retorno da família real para o reino, a perda de dois de seus três primeiros filhos, a tensão causada pelas tropas lusas no Rio de Janeiro e um rosário de traições do marido. No ano da declaração de independência, Leopoldina tinha 25 anos. Desobedecendo à orientação do pai, engajou-se na luta contra o projeto de recolonização de parte das cortes portuguesas. Passou a distribuir laços de seda verde aos simpatizantes da causa brasileira e, apesar de sua formação tradicional e de todas as decepções pessoais por que passou nestas terras, defendeu publicamente as ideias liberais em nome da monarquia nos trópicos. 
     
    Em 10 de maio escreveu ao marquês de Marialva: “Eis uma verdadeira sorte que tenha sido decidida nossa permanência no Brasil, segundo minha maneira de ver, e pensando em política, esse é o único meio de evitar a queda total da monarquia portuguesa”. Em 7 setembro, D. Pedro não vacilou ao ler a última frase de sua carta: “tereis pois o apoio do Brasil inteiro e, contra a vontade do povo brasileiro, os soldados portugueses que aqui estão nada podem fazer”.
     
    Clóvis Bulcão é autor do livro Leopoldina: A princesa do Brasil (Rocco: 2006).
     
    Saiba Mais
     
    OBERACKER, Carlos. A Imperatriz Leopoldina. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973.
    RANGEL, Alberto. Dom Pedro e a Marquesa de Santos. Tours (France): Typografia de Arrault e Cia., 1928.