A Amazônia sob fogo cruzado

Rafael Chambouleyron

  • Em 1609, depois de ir de Pernambuco ao Maranhão em uma missão, o padre jesuíta Luís Figueira escreveu que a viagem era tão longa que seria mais fácil e menos demorado viajar até os Açores, arquipélago português no Atlântico Norte. A grande distância em relação à cidade de Salvador da Bahia – capital do Estado do Brasil – foi um fator determinante na decisão de se criar uma província administrativa independente no norte da América. Tendo São Luís como capital, o Estado do Maranhão e Pará (ou Grão-Pará) seria fundado efetivamente em 1626, com a chegada do primeiro governador, Francisco Coelho de Carvalho. Mas os portugueses – ainda integrando a União Ibérica, liderada pela Espanha – teriam que travar inúmeras batalhas para assegurar o controle da região, muito cobiçada por outras potências européias e assolada por povos indígenas hostis aos conquistadores lusitanos.

     Quando comparadas a outras partes da América portuguesa, a conquista e a ocupação da região amazônica ocorreram relativamente tarde. Foi somente durante a década de 1610 – mais de meio século depois do estabelecimento de Salvador como capital do Brasil – que a Coroa resolveu ocupar a região de forma sistemática e definitiva. O Estado do Maranhão correspondia aproximadamente à atual Amazônia brasileira e compreendia várias capitanias reais (diretamente submetidas ao rei) – como Pará, Maranhão e, depois, Piauí – e privadas (de donatários), como Cametá, Caeté, Tapuitapera e Ilha Grande de Joanes.

     A tarefa de ocupar o novo estado seria, de fato, árdua para os portugueses: outras nações – particularmente a França, a Inglaterra e as Províncias Unidas (Holanda) –, atraídas pelas promessas de riquezas, enviaram para lá várias expedições. Já no fim da década de 1610, o capitão Manuel de Sousa de Eça, um dos primeiros conquistadores portugueses a atingirem a região, advertia a Coroa contra as atividades de holandeses e ingleses. Os estrangeiros visitavam o Cabo do Norte (atual estado do Amapá), comerciando tabaco e plantas tintórias (como urucum e carajuru), além de madeiras. Diferentemente dos portugueses, os ingleses e holandeses usaram a margem ocidental do delta do Amazonas para penetrar no território. Possuíam diversos postos na Amazônia e ao longo de vários rios, como o Tapajós e o Xingu. 

     A presença francesa era vista como uma perigosa ameaça aos interesses portugueses no Maranhão. Sob pressão, a Coroa toma uma decisão enérgica: a região deveria ser conquistada de uma vez por todas, e o quanto antes. Os franceses já estavam por ali havia algum tempo: dois exploradores, Charles des Vaux e Jacques Riffault, haviam se instalado entre os índios, estabelecendo importantes relações com certos grupos nativos. Mas somente alguns anos depois, quando retornou à França, Charles des Vaux encontraria os parceiros certos para empreender uma missão de maior amplitude na Amazônia. Com a autorização da rainha regente da França, o conquistador capitaneou uma companhia de colonização que chegaria ao Maranhão em 1612.

  •  A ameaça representada pela vila francesa de São Luís, numa terra da qual a Coroa ibérica se considerava dona por direito, serviu de justificativa para o envio de uma expedição militar com o objetivo de expulsar os “intrusos”. Havia muito tempo que os portugueses estavam combatendo os franceses no atual Nordeste, forçando-os a se deslocarem para o norte e para o oeste. Em 1615, Portugal finalmente conquistou São Luís, depois de alguns meses de conflitos. As batalhas contra a França se mantiveram no continente durante séculos, principalmente por causa da fundação de Caiena (atual Guiana Francesa).

     Com a vitória, os portugueses se estabelecem de vez na região e lentamente vão consolidando o seu domínio sobre a região amazônica. As cidades de São Luís e Belém (1616) e a fortaleza de Santo Antônio de Gurupá (1623) – a “chave” ou a “sentinela” da região, como foi definida na época – constituíram os três centros estratégicos da dominação do Estado do Maranhão e Pará. Mas a conquista da Amazônia não seria assim tão fácil; os portugueses teriam inúmeros confrontos com potências européias – suas inimigas de praxe – e ainda enfrentariam os índios para assegurar a supremacia da Coroa sobre o território.
     As guerras continuariam: durante a primeira metade do século XVII, foram freqüentes os conflitos com ingleses, irlandeses e holandeses. Em meio a tantas batalhas, uma boa notícia para a Coroa: na década de 1640, ingleses e irlandeses praticamente abandonam suas atividades na região. Mas os holandeses não dariam trégua e seguiriam firmes em seus combates, oferecendo resistência na floresta e no Cabo do Norte, e ocupando São Luís em 1641. A cidade só foi retomada três anos depois. 

     A ação holandesa pode ser considerada parte de um conflito mais amplo entre as nações ibéricas e as Províncias Unidas. Deflagradas na América (na ocupação de Bahia e Pernambuco, entre outras batalhas), na Ásia e na África, as guerras começaram no fim do século XVI e duraram mais de 70 anos, tendo um efeito devastador no império ultramarino português (sob o domínio da Espanha entre 1580 e 1640). 

     Como se não bastassem os sangrentos embates que travaram com as nações européias, os portugueses tiveram que enfrentar várias rebeliões e conflitos com os indígenas durante as primeiras décadas da conquista. Os líderes indígenas Amaro e Cabelo de Velha foram os principais inimigos dos portugueses no início da conquista. As autoridades coloniais fizeram muitas expedições para punir os índios considerados hostis. Apesar do relativo sucesso de muitas dessas expedições, os conflitos continuaram ao longo de todo o período colonial e representaram um grande empecilho para o próprio desenvolvimento da sociedade e da economia portuguesas na região.

  •  Como sempre, havia certos setores que lucravam com as guerras: as batalhas ofereciam uma excelente oportunidade para os portugueses escravizarem os índios prisioneiros. A Coroa procurou de várias maneiras regular a ação dos colonos, estabelecendo limites, nem sempre obedecidos, às lutas promovidas por moradores e autoridades contra os nativos. 

     O “deixa disso” não foi acatado: os colonos da região continuaram se envolvendo em violentas batalhas com os índios, e estes continuaram atacando os moradores. Opondo-se ao avanço dos portugueses, os chamados “índios do corso” assolaram principalmente a fronteira oriental da capitania do Maranhão, destruindo fazendas e matando portugueses e seus escravos. As ações desafiadoras levaram a Coroa a agir com vigor em várias ocasiões. 

     A região do Rio Itapecuru, na capitania do Maranhão, por exemplo, foi um espaço continuamente visado pelos ataques dos grupos indígenas. Já em 1624, o capitão-mor do Maranhão, Antônio Monis Barreiros, sugeria à Coroa a construção de uma fortaleza sobre o rio, e justificava o requerimento: “por respeito dos selvagens não descerem pelo rio abaixo e fazerem dano às fazendas que nele se fazem”. No fim do século XVII, os “índios do corso” continuavam a atacar e devastar as comunidades de moradores no Itapecuru, a ponto de o rei declarar uma expedição punitiva organizada pelo governador do Maranhão uma ação “justa e necessária”.

     Nem todos os grupos indígenas eram hostis aos colonizadores: muitas nações se aliaram à Coroa, combatendo “estrangeiros” e outros grupos nativos, como, aliás, ocorreu em toda a América portuguesa. Os conquistadores portugueses preferiam ter as nações indígenas do seu lado, e não lutando contra eles. A possibilidade de uma aliança entre os chamados “intrusos” – as potências européias rivais – e grupos indígenas causava calafrios espinha abaixo nos portugueses. De fato, estes pactos militares anti-Portugal ocorreram com certa freqüência durante a conquista: as ameaças “estrangeira” e “indígena” muitas vezes se associavam para lutar contra as tropas portuguesas. 

  •  Em 1647, o capitão-mor do Pará, Sebastião Lucena de Azevedo, relatava ao rei um fato ocorrido no naufrágio de um navio na Ilha de Joanes (ilha do Marajó): os índios que viviam na ilha acabaram matando todos os tripulantes. Tal barbárie, segundo o oficial, devia-se ao fato de serem aqueles nativos “capitais inimigos do nome português”. Depois, continuava Lucena de Azevedo: “(...) andam feito corsários, admitindo toda a gente da Europa que a estas partes vem, como holandeses, ingleses e franceses, tendo com eles grandes comércios e mercancias”. Os colonos se sentiam muito ameaçados: um ano mais tarde, o mesmo oficial advertiria o rei sobre o fato de os holandeses estarem ensinando aos índios o uso de armas de fogo, “em que já muitos deles andam destros [ou seja, hábeis]”. 

     A conquista da região amazônica acompanhou a progressiva ocupação da costa norte da América portuguesa, movendo-se de leste para oeste, em uma campanha empreendida, na maior parte, pelos moradores de Pernambuco. Os “conquistadores” pernambucanos procuraram estabelecer a produção canavieira, principal atividade econômica de sua província. 

     Os conflitos entre famílias, tradição trazida pelos novos moradores, constituíram um capítulo importante da construção da Amazônia colonial. Nos primeiros trinta ou quarenta anos da conquista, esses conflitos, ao lado das batalhas travadas contra “estrangeiros” e indígenas hostis, fizeram parte do cotidiano da vida no Estado do Maranhão. 

     Após a Restauração da Coroa portuguesa, em 1640, um novo período foi inaugurado no Maranhão. O novo rei, D. João IV, estava cada vez mais preocupado com a ocupação e o domínio militar da região. Para a Coroa, o povoamento e o desenvolvimento econômico do Maranhão – sua “conservação e aumento”, como se dizia na época – se tornariam uma prioridade. Com a descoberta de novos produtos – as chamadas “drogas do sertão” (como cacau, salsaparrilha e cravo-de-casca, entre outros) – e com o declínio do domínio português no Oriente, os colonizadores passaram a ver no Estado do Maranhão uma promissora fonte de riquezas. A Coroa incentivaria a extração e o cultivo de muitos desses produtos, além de fomentar – sem muito sucesso – o povoamento e o incremento do comércio na região.

    Rafael Chambouleyron é professor de História da Universidade Federal do Pará e autor de “Missionários, índios, capitães e moradores: relações e conflito na Amazônia seiscentista”. In: FORLINE,  Louis, MURRIETA, Rui e VIEIRA, Ima (orgs.). Amazônia além dos 500 anos. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2006, pp. 129-150.