A arca do reino

Renata Ferreira Munhoz

  • Clique sobre a imagem para ampliarQue toda qualidade de pássaros e animais quadrúpedes descobertos nesta capitania sejam remetidos a Portugal. Datado de 5 de outubro de 1773, o aviso é do secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, ao governador da capitania de São Paulo, o Morgado de Mateus. A assinatura de próprio punho do governador, “Dom Luis Antonio de Souza”, pode dar a entender que se trata de uma correspondência de sua autoria. Na verdade, é uma cópia feita a mando dele.

    Da mesma forma que atualmente os cartórios “reconhecem” firmas, os documentos setecentistas eram firmados como maneira de comprovar a sua autenticidade. A assinatura do Morgado de Mateus tem caligrafia diferente da do restante do documento, o que pode ser comprovado pela comparação do S maiúsculo no seu sobrenome “Souza” com a primeira letra do manuscrito, em “Sua”. Nota-se a mesma diferença no D do título honorífico “Dom” e na letra inicial do segundo parágrafo, na abreviatura de “Deus”.

    Por falar em abreviatura, costuma-se dizer que esta é a grande dificuldade dos leitores atuais em compreender os manuscritos do século XVIII. Nesse documento, encurtam-se apenas os vocábulos mais comuns na linguagem das Secretarias, como o pronome de tratamento “Vossa Senhoria” (V.S.), com o qual o Morgado de Mateus é chamado por seu superior em Portugal; a maneira como se refere ao Rei “Sua Magestade” (Mge), grafado com G no período; e a palavra “muito” (mto), de grande recorrência na época. As abreviaturas revelam um autor material (o escriba que copia) bastante hábil, pois seu traçado seguro demonstra técnica no manejo do instrumento de escrita, a pena de ave. O escriba, funcionário do governador de São Paulo, reproduziu o conteúdo textual dentro da estrutura diplomática do aviso, com grafiahumanística legível de traçado dextrógiro (deitado à direita).

    Grande parte dos termos abreviados está na fórmula diplomática final, no fecho do aviso “Que Deus guarde”, comum a quase toda correspondência do período. Segue-se à fórmula a data tópica com o nome do local, o “Palácio de Nossa Senhora da Ajuda”. Ali fora escrito pelo primeiro escriba, aquele a quem Martinho de Melo e Castro (autor intelectual do documento) tinha ditado o texto. O fecho, onde consta também sua data cronológica, apresenta a marca da tinta ferrogálica borrada. Essa mancha prova que o papel de trapo da marca D & C Blauw, de 350 mm x 220 mm, era absorvente.

    Renata Ferreira Munhoz é bolsista da Capes e autora da dissertação “Correspondência oficial para o Morgado de Mateus: Transcrição semidiplomática do Livro Nº 170 do AESP (de 1767 a 1775)”, (USP, 2009).

    CONTEXTO HISTÓRICO

    Exóticos em alto-mar

    O texto transmite a ordem do rei D. José para que sejam enviados quadrúpedes e pássaros do Brasil colonial ao reino. Muitos deles morreriam no longo trajeto marítimo até a Europa, que naquele tempo durava aproximadamente três meses. Os que chegassem seriam alvo das atenções na Corte como seres exóticos, como sugere uma carta enviada pelo Morgado de Mateus à esposa em 25 de dezembro de 1765, dizendo ter mandado “uma arara muito rara e um papagaio especial”.

    Solução do “Decifre”

    Sua Magestade hê servido, que Vossa Senhoria pelas

    ocazioens, que se oferecerem, mande com a mayor

    recomendaçaõ entregar no Rio de Ianeiro, to-

    da a qualidade de passaroz, e Animaes qua-

    drupedes, que se poderem descobrir nessas Ca -

    pitaniaz, para daLy serem remetidos a este

    Reyno: O que o mesmo Senhor ha por muito

    recomendado a Vossa Senhoria

    DeusGuarde a Vossa Senhoria Palacio

    de Nossa Senhora da Ajuda a 5 de Outubro de 1773

    = Martinho de Mello e Castro = Senhor Dom

    Luis Antonio de Souza Botelho Mouraõ

    Dom Luis Antonio de Souza