A arte de formar brasileiros

Patrícia Hansen

  • Toda quarta-feira, as crianças já sabiam: era dia de correr às bancas atrás de mais um número de "O Tico-Tico". Além de ser a única revista dedicada exclusivamente ao público infantil, tinha uma novidade irresistível: era a primeira a publicar histórias em quadrinhos por aqui. Mas nem tudo se resumia a humor e leveza na leitura dos pequenos. Lá pelas tantas, eles se deparavam com um texto como este:

    “Um homem só pode mostrar o vigor da sua inteligência, ser ativo, trabalhador, empreendedor, quando é sadio, quando goza saúde. Todo aquele que vive doente, fraco, não pode ser útil a si mesmo nem aos outros”. Conselhos de Tio José logo em sua primeira aparição, em 1906. O personagem fictício assinava a seção “A arte de formar brasileiros”, cujo conteúdo seria sempre este: lições de moral e civismo.

    A preocupação com a formação cívica das crianças estava em alta. Na verdade, vinha desde o século XIX: no período imperial, Regulamentos da Instrução Pública chegaram a propor que a primeira alfabetização fosse realizada com base na leitura da Constituição de 1824. Mais tarde, com o fim da escravidão (1888) e a proclamação da República (1889), esse projeto precisou ser revisto – era necessário mudar sentimentos, valores e comportamentos ligados à velha ordem social e política. Pensando nisso, muitos intelectuais se envolveram no debate e produziram textos sobre a educação dos “futuros brasileiros”.

    Até a década de 1920, praticamente toda a literatura infantil brasileira esteve comprometida com a transmissão de ideais de moralidade e patriotismo. Entre os principais autores do gênero estavam Olavo Bilac (Poesias infantis), Coelho Netto (Contos pátrios, escrito com Bilac) e Júlia Lopes de Almeida (Histórias de nossa terra). Sem falar no historiador Manuel Bomfim, que escreveu "Através do Brasil com Olavo Bilac" (1910) – e não por acaso ajudaria a fundar e editar a Tico-Tico. Nessas obras, ao orgulho ufanista pelas belezas naturais do país somavam-se lições sobre o mérito individual, a importância do estudo e do trabalho, a solidariedade entre os brasileiros independentemente da cor da pele, cuidados de higiene, disciplina e controle do tempo, entre outros assuntos que apontavam para a mesma direção: um esforço de modernização da sociedade.

    A Tico-Tico nasce afinada com esses ideais para o “futuro da nação”. Embora não se tratasse de leitura escolar, ao assumir um caráter educativo a revista conseguia legitimidade junto aos pais e professores. Sua missão era “instruir e deliciar”, como define o editorial de lançamento, em 11 de outubro de 1905. E a coluna “A arte de formar brasileiros” se encarrega da primeira parte dessa missão.

    Falando diretamente aos meninos, a revista refletia as grandes esperanças depositadas nas novas gerações: “Os homens do Brasil de amanhã, do Brasil daqui a vinte anos, do Brasil que, se forem cumpridos os seus destinos, será então apontado na linha das nações mais pujantes pela grandeza do seu território, do seu progresso e dos seus filhos”.

    “Homens” e “filhos” – as expressões masculinas não estão ali por acaso. Também a seção do Tio José reforçava uma noção de hombridade logo em seu cabeçalho: “Coisas que precisam saber os meninos que se querem tornar homens fortes – Coisas úteis que os pais devem ensinar aos filhos – O que o menino deve saber para mais tarde vencer as dificuldades”. O público-alvo, portanto, eram eles (“futuros salvadores da pátria”), e não elas (“futuras mães de família”).

    Hábitos regrados, boa alimentação e exercícios físicos eram os principais ingredientes de uma vida saudável. No artigo que inaugura a seção, com o título de “A saúde, nosso bem melhor”, o “tio” aconselha as crianças a ouvir “respeitosamente os conselhos de seus pais, mesmo quando esses lhes pareçam exigências inúteis; comer moderadamente, dando preferência a alimentos vegetais, não conservar no corpo roupas molhadas ou úmidas, dormir cedo e levantar-se também cedo, manter o rigoroso asseio do corpo e fazer exercícios físicos moderados, ginástica, jogos atléticos como o football e o cricket, carruagem, equitação, corridas a pé e outros”.

    Aproveitar bem o tempo era outra condição para os meninos se transformarem em pessoas “de valor”. Só com muita ordem, “organização metódica, inteligente e calma do serviço”, eles poderiam cumprir todas as suas tarefas. Seguindo essas lições, logo estariam prontos para o trabalho, espécie de obsessão do nacionalismo da Primeira República (1889-1930), que fazia todo o sentido numa sociedade de passado escravocrata tão recente.

    E não bastava que a profissão escolhida fosse proveitosa apenas para o próprio indivíduo. O ideal era encontrar uma carreira que estivesse de acordo com as necessidades nacionais. Por esse motivo, as crianças precisavam saber que “a maior desgraça deste país é a preocupação de ter um título; todos querem ser médicos, advogados, engenheiros, militares ou empregados públicos”, enquanto as “carreiras de mais futuro” eram justamente aquelas que supriam o “tudo” que “ainda estava por fazer” num “país novo” como o Brasil: o comércio e a indústria, a eletricidade e a mecânica.

    Tio José também se queixava do fato de a maioria dos brasileiros fazer questão de viver nas capitais, o que só aumentava o atraso de todo o país. “O Brasil aí está, imenso, com terras magníficas que produziriam tesouros sem conta, se fossem cultivadas e exploradas; rios que só por si são riquezas magníficas, florestas colossais cheias de madeiras, frutas e plantas preciosas, tudo inútil, abandonado porque não sabemos aproveitá-las”. Abusando desse tom hiperbólico, a cada número o redator da Tico-Tico acentuava o contraste entre as riquezas nacionais e a falta de ação dos brasileiros.

    A idéia de que tesouros encontravam-se escondidos à espera de novos brasileiros preparados para aproveitá-los era um mote muito comum na literatura cívica daquela época. A esperança, mais uma vez, era depositada nas crianças, cuja boa formação poderia consolidar uma mentalidade burguesa, empreendedora e moderna, condição para a superação do atraso do país. “Pode-se dizer que temos um país em que tudo está ainda por fazer. Essa tarefa cabe a vós, meninos de hoje que amanhã sereis homens”.

    Saúde, organização, obediência. As virtudes ensinadas aos leitores de O Tico-Tico não diziam respeito apenas à sua qualidade de vida individual. Eram provas de patriotismo. Como os adultos já não conseguiam abandonar suas velhas “manias”, estava nas mãos das crianças uma grande responsabilidade: fazer do Brasil “um país próspero e feliz”.
     
    Patrícia Hansen é autora da tese “Brasil, um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na Primeira República” (USP, 2007).

    Saiba Mais - Bibliografia:

    CARVALHO, José Murilo de. “Brasil. Nações Imaginadas”. In: Pontos e Bordados. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

    LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. 6ª ed. São Paulo: Ática, 2006.

    MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello e XAVIER, Libânia Nacif (orgs). Impressos e história da educação: usos e destinos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

    ROSA, Zita de Paula. O Tico-Tico: meio século de ação recreativa e pedagógica. Bragança Paulista: Edusf, 2002.

    VERGUEIRO, Waldomiro e SANTOS, Roberto Elísio (orgs). O Tico-Tico: 100 anos. Vinhedo, São Paulo: Ópera Graphica Editora, 2005.

    Do moralismo à cidadania

    Falar sobre educação cívica no Brasil de hoje é quase um tabu. O incômodo vem da (má) lembrança das disciplinas escolares Moral e Cívica, Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB), obrigatórias nos currículos durante o regime militar. Mas se lições de patriotismo parecem algo no mínimo anacrônico, ninguém contesta a importância do sentido moral e ético a ser transmitido pelos materiais educativos e produtos culturais (livros, TV, Internet, etc.) dirigidos ao público infanto-juvenil. Atualmente, a sociedade e as políticas públicas guiam-se por ideais diferentes daqueles que serviram de padrão em momentos de nacionalismo exacerbado. Pelo menos em teoria, atribui-se valor positivo a princípios democráticos, como a afirmação das diferenças entre indivíduos e grupos, o respeito pela diversidade e a preservação do meio ambiente. Prova de que a moral e o civismo não são um mal em si. Apenas produtos da época em que se vive.

    Meu primeiro gibi

    Durante mais de meio século, a revista  O Tico-Tico divertiu e instruiu crianças de todo o Brasil. Lançada pelo empresário e deputado mineiro Luiz Bartolomeu de Souza e Silva (depois assumida por seus herdeiros), foi concebida pelo historiador Manuel Bomfim e pelo jornalista e cartunista Renato de Castro. Não são poucos os intelectuais, escritores e políticos que se formaram nas letras tendo a revista como companheira. Entre eles, o historiador Gilberto Freyre, o folclorista Câmara Cascudo, o poeta Drummond e o romancista Érico Verissimo. Numa tiragem que variou entre 20 mil e 100 mil exemplares, saía em dois tipos de papel: quatro páginas coloridas e as restantes, em vez do preto-e-branco habitual, numa combinação de branco com vermelho, verde ou azul. Até a década de 1930, não tinha rival à altura. Seu reinado só seria abalado com a crescente publicação de quadrinhos norte-americanos. Concorrendo com super-heróis, as aventuras de Juquinha, Reco-Reco, Azeitona e Bolão ainda resistiram por algum tempo, mas a Tico-Tico não conseguiu manter sua periodicidade depois de 1958. Nos anos 1960, passou a lançar apenas alguns almanaques ocasionais antes de seu fechamento definitivo.