A arte de partejar

Lia Jordão

  • Frontispício de Novo Methodo de Partejar, de Manoel José Affonso e José Francisco de Mello, publicado em 1772, em Lisboa. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)Trazer um bebê da “clausura materna à luz do dia” não é para qualquer um: o ato era uma das principais causas de morte entre as mulheres no século XVIII. Manoel José Affonso e José Francisco de Mello sabiam disso, e resolveram preencher uma lacuna na literatura em língua portuguesa. No ano de 1772, publicaram em Lisboa o Novo Methodo de Partejar recopilado dos mais famigerados e sábios autores. Guardado na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional, o livro apresenta, sob a forma de diálogos temáticos, lições detalhadas sobre a assistência ao parto.

    O Novo Methodo faz longas descrições sobre a anatomia feminina durante e após a gestação – das “tubas falopianas” aos ossos “das cadeiras”. Ensina a diferenciar os sinais do parto real daquele que é falso – principalmente o ritmo e a intensidade das contrações. Explica a ruptura da bolsa d’água, enumera as posições em que se pode encontrar o bebê e as técnicas para o seu reposicionamento, descreve métodos para se examinar a dilatação, certificar a vitalidade do feto e facilitar a eliminação da placenta, considerada um fator de risco. Além da genérica advertência para se “tratar o feto com toda limpeza”, o livro traz pouquíssimas referências às práticas de higiene e assepsia.

    Quanto à nutrição da gestante, os autores mandam evitar as “bebidas espirituosas”, chocolate e café. O recomendado é caldo de galinha, “leite com gemas de ovos batidas com açúcar, ou algumas fatias de pão de ló”. Para recém-nascidos com “poucos alentos de vida”, colheradas de café, água de canela e laranja, ou até mesmo vinho, antes do peito da mãe.

    Algumas práticas sobrevivem ao tempo, e hoje são defendidas pelos adeptos do parto humanizado. Segundo os autores, por exemplo, a posição da parturiente deve ser de livre escolha, indicada por ela própria: quem tem que se adaptar são a parteira e o cirurgião.

    Durante a maior parte da história, as gestantes foram acompanhadas apenas por parteiras, que tinham um saber quase exclusivamente empírico. Dar à luz era assunto “para as mulheres”. Entre os séculos XVII e XIX, no entanto, os médicos começam a assumir gradativamente o protagonismo no partejamento. O Novo Methodo é parte desse processo de disputa de autoridade e competência. Ele se destina aos “cirurgiões, ou mulheres destinadas a semelhante ministério, a que vulgarmente chamam Parteiras”. Reconhece o papel de ambos, mas delimita suas esferas de ação.

    Gravura de 1848 retrata feto nos últimos dias de gravidez. (Imagem: Reprodução)Um “feliz parto” pode ser esperado “se a mulher for sadia, nutrida, bem disposta, de boas carnes, e estas em boa consistência, e feliz em outros partos”. Neste caso, “a parteira (...) não deve fazer cousa alguma mais (...). Da natureza deve esperar todo o socorro, mas sem embargo, se for precisa alguma fomentação, a fará naquelas partes, onde mais convenha; depois de feito o parto, tratará da mãe, e filho, segundo os preceitos da arte”. Um dos maiores erros que uma parteira poderia cometer seria justamente tentar intervir quando o parto é “contra a natureza”, ou seja, complicado. Nessas situações, é o cirurgião que deve entrar em cena para tomar decisões e agir adequadamente.

    A disputa de autoridade é clara: “Sempre que [as parteiras] pretendem fazer opinião per si erram; o que sucede muitas vezes, porque querem julgar a capacidade do Cirurgião ou Médico opondo-se aos conselhos destes, fazendo muito por capacitar a parturiente, e mais circunstantes, de que o remédio aplicado pelo dito Cirurgião, ou Médico por quente ou frio a poderá ofender, ou matar, ou que as ajudas não têm lugar algum no tempo do parto, ou depois dele, e enfim quando veem o perigo evidente, ou seja na dita parturiente, ou feto, e não mandam chamar professor douto e sábio; é sem desculpa o seu erro”.

    Com assistência obstétrica de qualidade, hoje é possível atingir baixíssimos índices de mortalidade materno-fetal. No entanto, os mesmos procedimentos que reduziram o temor da morte por parto acabaram por tirar da mulher o protagonismo no evento. O ato de dar à luz, antes visto como fisiológico, passou a ser tratado como um evento médico, a ser assistido com exclusividade por esses profissionais. A gestante passou de agente a paciente.

    Especialmente no Brasil, onde a incidência da cesariana é alarmante, a resposta é o crescimento do movimento de resgate do parto natural. A polêmica em relação à forma como ele deve ser conduzido, no entanto, permanece. E apesar de todas as discussões e incertezas, um desejo continua igual ao de sempre: o de que, ao final, a mãe e o bebê estejam saudáveis.