A arte de vestir santos

Nancy Rabelo

  • Quando as procissões saem às ruas, o clima é de comoção intensa. O destaque são as imagens que, sobre luxuosos e pesados andores, seguem acompanhadas de banda de música e autoridades civis e eclesiásticas. Os fiéis seguem junto, emocionados, entoando cânticos e rezas. Alguns chegam às lágrimas, outros se prostram no chão, de joelhos. Esse ritual se repete por todo o país há cinco séculos. A tradição das procissões foi instituída com a chegada dos colonizadores, associando-se à fundação de sede de governo na América portuguesa, e continua até hoje.

    Antes do dia solene, os preparativos são minuciosos. Com capricho, costuram-se vestes, que recebem belos bordados e acabamentos refinados. Perucas são lavadas e oleadas, para que os cabelos formem madeixas brilhantes, e joias são escolhidas. Mas engana-se quem pensa que essas roupas e acessórios são usados por algum sacerdote ou mesmo pelos fiéis. Sua função é adornar estátuas de santos e santas. Essas imagens, esculpidas para receber indumentária, são chamadas de “santos de vestir”. Cabe às mulheres paramentar e vestir as imagens femininas, enquanto os homens vestem os santos masculinos.

    Apesar de não receberem a mesma atenção dedicada aos santos retabulares, que são representados com vestes e atributos esculpidos e policromados, os de vestir podem ser obras finamente acabadas. Seus corpos esculpidos anatomicamente apresentam empenho na representação das formas. As partes visíveis da escultura – mãos, rosto e eventualmente pés – têm recursos expressivos, qualidades anatômicas e carnação delicada. Não menos engenhosas e preciosistas eram as soluções das articulações, feitas para dar movimento e facilitar a vestimenta do santo, que por vezes resistiram a centenas de anos. A grande vantagem da indumentária de tecido é a leveza que ela proporciona às imagens, aliviando o peso e o esforço daqueles que carregam seus andores.

    As representações iconográficas mais comuns entre as imagens de vestir são, sobretudo, aquelas ligadas às procissões da Paixão, como o Cristo, Nossa Senhora das Dores e o Senhor Morto, ou exemplares da iconografia franciscana pertencentes às Ordens Terceiras de São Francisco, responsáveis pela realização da Procissão das Cinzas.

    Alguns exemplares da Virgem Maria de vestir suscitaram tanta devoção que se tornaram oragos (santo ao qual se dedica um templo ou uma capela). Este é o caso da Nossa Senhora da Penha de Vila Velha da Capitania do Espírito Santo, trazida por frei Pedro Palacios, religioso leigo castelhano, em 1569, e que até hoje se encontra na mesma igreja, em Vitória. Um artista de Málaga esculpiu a cabeça, as mãos e o Santíssimo Menino. Já o corpo, ao que tudo indica, foi de autoria do Santo Varão (frei Pedro Palacios). Dos olhos, ornados com sobrancelhas e pestanas naturais, corriam lágrimas que pareciam verdadeiras, feitas em antiga resina transparente. Com altura de quatro palmos, a santa portava riquíssimas galas de preciosas telas, trocadas por vestes roxas no Advento (de 30 de novembro a 24 de dezembro). Tinha tantas joias de ouro e pedras preciosas que não comportava tudo que lhe ofertavam. Frei Miguel de São Francisco ficou tão impressionado com a obra que, quando a viu, afirmou: “Pasmei de ver na terra o que cremos estar no Céu...”.

    Em Minas Gerais, a riqueza do ouro favoreceu o luxo das comemorações e a popularidade dos cortejos e dos santos processionais. Exemplo típico da pompa com que se realizavam tais festas públicas barrocas foi narrado no Triunfo Eucarístico em 1733, quando em Vila Rica – atual Ouro Preto – se comemorou a inauguração da matriz do Pilar. Foi formado um longo séquito, da Igreja do Rosário à nova construção, do qual participaram inúmeras irmandades, em grande gala, com seus estandartes e santos padroeiros.

    No entanto, toda a mobilização popular em torno dos santos não impediu que estas imagens caíssem no esquecimento, permanecendo à margem das pesquisas de arte, consideradas mal-acabadas e obras de arte “menor” até a criação, em 1996, do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Embora não os venha valorizando devidamente, o Rio de Janeiro também teve seus santos de vestir. A imagem de Nossa Senhora da Conceição, datada de 1571, é a mais antiga deste tipo no estado. A peça foi descoberta pelo padre José Luiz Montezano, totalmente desmantelada, na sacristia da matriz de Nossa Senhora da Piedade, em Magé.  

    Trata-se de um dos raros exemplares de santos de vestir usados pelos jesuítas nos remotos tempos de catequese na Guanabara, quando somente a eles competia realizar a procissão do Dia das Onze Mil Virgens, assim como as do Dia da Santíssima Trindade e da terça-feira das Quarenta horas. A comprovação está no solado esquerdo da sandália da escultura, onde aparece a insígnia da Companhia de Jesus. Na parte externa do solado do pé direito da sandália, o sobrenome “Palacoli” sugere origem italiana. Na Itália, a herança artística conferiu reconhecimento ao estatuto social dos artistas, fazendo com que se orgulhassem de seu ofício e assinassem suas obras, hábito que não era recorrente entre os portugueses.

    A escultura foi concebida dentro do espírito jesuítico, de acordo com os preceitos de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, ordem intelectualizada e dinâmica que levou a palavra de Deus aos quatro cantos do mundo e, quando necessário, fez guerra contra os heréticos. A Nossa Senhora da Conceição é representada sobre o globo terrestre salpicado de estrelas, pisando a serpente, numa alusão à vitória da Virgem sobre o mal, ou sobre o pecado original.

    Nesta configuração, mais antiga, não foram incluídas as pontas da lua crescente, elemento que só foi incorporado às imagens da Conceição após a batalha de Alcácer Quibir, travada em 1578, na qual se deu a derrota portuguesa e o desaparecimento de D. Sebastião. Como na bandeira dos mouros havia a representação da lua crescente, esta passou a ser adotada sob os pés de Nossa Senhora para simbolizar a cristandade vencendo a heresia, compatível com a interpretação da passagem da Mulher e do Dragão, narrada na Bíblia, no Apocalipse (Apocalipse, 12.1).

    Ao ser analisada de frente, a Virgem tem uma postura naturalista, com a perna direita flexionada. A imagem está em pausa, em descanso, com graça e suavidade. Nesta visão frontal, não se vislumbra com nitidez nada sobre os pés de Maria. A serpente – o mal, o demônio – está dissimulada no mundo, esmaecida e camuflada. Nota-se apenas o fruto, a tentação. Num engenhoso truque ocular, ao contemplá-la de lado, a interpretação postural muda: a Virgem projeta o corpo à frente, impulsionando o peso do corpo sobre o pé direito, que pisa a serpente num ato decidido, enérgico. Existe neste “segredo” técnico de fatura uma engenhosidade rara, típica dos conhecimentos reservados aos artistas das oficinas eruditas renascentistas e do maneirismo, segredos que guardavam entre eles, em circuito fechado.
     
    A parte anterior dos braços e o mecanismo de articulação nos ombros foram modificados, o que se explica pelo desgaste sofrido na madeira neste ponto. Na parte posterior da escultura, estão localizadas aberturas retangulares nas costas e nos quadris, escavadas com precisão geométrica. Este recurso, utilizado para tornar a imagem mais leve, foi interpretado, durante longo tempo, como compartimentos destinados ao tráfico de ouro, denominando as imagens como “santos do pau oco”.

    Este tipo de representação de imagem de vestir de Nossa Senhora apresentada em anatomia completa é rara e remete aos exemplares dos séculos XVI e XVII. Com as prescrições das Constituições da Bahia – uma legislação eclesiástica adaptada ao contexto do Brasil, estabelecidas em 1720 por D. Sebastião Monteiro da Vide – as imagens marianas passaram a portar vestes, buscando-se preservá-las de alusões profanas ou desonestas ao longo dos séculos XVIII e XIX. Um exemplo é a imagem de Nossa Senhora das Dores que se encontra na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Porto das Caixas, em Itaboraí. As recomendações, porém, não resistiriam ao século XX, e voltaram a aparecer modelos de imagens de vestir anatômicas numa configuração moderna, mais afeita à representação feminina atual.

    Hoje em dia, as procissões não desapareceram por completo, mas perderam a forte penetração popular e o efeito de parar o cotidiano, como no período do Brasil Colônia. As imagens de vestir são um dos resquícios artísticos desse tempo, além de serem um símbolo da fé do período barroco.

    Nancy Rabelo é professora de História da Arte do Cefet-RJ e autora da tese “A escultura religiosa fluminense e as visitas pastorais do Cônego Pizarro em 1794-95” (EBA-UFRJ, 2009).


    Saiba Mais - Bibliografia


    CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Piedade barroca, obras artísticas e armações efêmeras: as irmandades do Senhor dos Passos em Minas Gerais”. In: Colóquio Luso-brasileiro de História da Arte, 6, 1994. Anais. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004, v.1, p. 17-23.

    FLEXOR, Maria Helena Ochi. Imagens de vestir na Bahia. In: Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte, 5, 2001, Faro, Portugal. Actas. Faro: Universidade do Algarve, 2001, p. 275-293.

    QUITES, Maria Regina Emery. Imaginária processional: classificação e tipos de articulações. Belo Horizonte: Imagem Brasileira, nº1, p. 129-134, 2001.

    QUITES, Maria Regina Emery. “Imagem de vestir: revisão de conceitos através de estudo comparativo entre as Ordens Terceiras Franciscanas no Brasil”. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2006.