Em pouco mais de um século, o cacau veio, venceu e passou. Mas não será esquecido jamais. Graças à narrativa e ao imaginário de um filho ilustre, a aventura de uma pequena região no sul da Bahia se tornou conhecida no Brasil e no estrangeiro. Os romances de Jorge Amado contam histórias, falam de fatos e pessoas, relembram passagens importantes da vida da região cacaueira baiana.
A história do cultivo de cacau na antiga capitania de São Jorge dos Ilhéus começou em meados do século XIX, atingiu seu grande momento entre o início e o meio do XX, para mergulhar em sucessivas crises nas últimas décadas do século passado, o que provocou uma total mudança nos cenários, da opulência à decadência.
No começo, chamava atenção a riqueza natural das grandes áreas cercadas por Mata Atlântica. No seu interior foram construídas as roças e fazendas de cacau. Em Terras do Sem Fim (1942) e Tocaia Grande (1984), encontramos a descrição do processo de ocupação, a luta pela terra, a disputa entre vizinhos. Tanto o coronel Boaventura Andrade quanto o “capitão” (administrador) Natário Fonseca mandavam e se faziam obedecer, tinham suas regras sempre acima das leis e assim eram reconhecidos, às vezes admirados. Os trabalhadores, na maioria originários dos sertões da Bahia e de Sergipe, ficavam assustados com tudo o que viam: da exuberância da natureza à violência da conquista. Afinal, até 1913 a Bahia foi o maior produtor e exportador de cacau de todo o mundo, e qualquer pedaço de terra era cobiçado, pois dele se poderiam colher os chamados frutos de ouro, como eram conhecidas as amêndoas da planta.
“Ao fim das lutas pela conquista das matas, quando os caxixes substituíram as tocaias nos recentes conflitos entre os coronéis do cacau pela posse das áreas devolutas, sobraram jagunços pelas estradas indo e vindo sem rumo certo, oferecendo-se para matar a módico pagamento, matando de graça para roubar”, nos conta o romancista em Tocaia Grande.
Não havia latifúndios. O máximo que os maiores produtores conseguiram foi adquirir múltiplas roças, nem sempre próximas. O tamanho da produção determinava as hierarquias sociais: quem tinha colheita pequena quase sempre era obrigado a vender seu cacau aos maiores produtores, para beneficiamento dos frutos e posterior venda. Ao longo do tempo, os grandes produtores se tornaram também comerciantes, juntando as duas principais atividades da exploração do cacau.
Ativos participantes da vida social e política, os donos dos frutos de ouro eram líderes legitimados pelo voto, quase sempre conquistado pela força do dinheiro, das armas ou do domínio das instâncias públicas – como a Justiça, a polícia e a cobrança de impostos. No outro extremo da ordem social, os trabalhadores Varapau, Florindo e Capi – em São Jorge dos Ilhéus (1944) – eram explorados de todas as formas: no salário que mal recebiam e tinham que devolver quando compravam, a preços extorsivos, gêneros de primeira necessidade no barracão do dono da fazenda; nas jornadas de trabalho sem qualquer limite; na ausência de serviços básicos, como educação e saúde. Algumas vezes, o trabalhador bom de tiro ou de outras artes complementava a lida agrícola com a de jagunço ou cabra do chefe ou coronel.
A monocultura do cacau não propiciou o surgimento de grandes cidades. As duas mais importantes foram a colonial Ilhéus e a republicana Itabuna. A primeira tinha no seu porto o principal foco das discussões e dos interesses. Mundinho Falcão, personagem de Gabriela, Cravo e Canela (1958), ficou famoso por ter incorporado o papel de líder em defesa da melhoria do porto, tornando-o exportador direto de cacau, independente do porto de Salvador. Foram décadas de luta, cuja solução só foi encontrada após inúmeras crises e perdas. Itabuna desenvolveu-se a partir de uma localização estratégica no interior da região produtora, o que a fez a cidade de maior destaque, especialmente por seu comércio dinâmico.
Essas cidades abrigaram as disputas políticas mais importantes e forneceram os líderes mais representativos da região. Mas que não se pense que sua atuação lhes tenha dado grande destaque no cenário baiano. Pelo contrário: o cacau, apesar de ter sido o principal produto da agricultura e da exportação no decorrer do século XX, em muitos anos participando com mais da metade da receita do estado, jamais viu um de seus líderes tornar-se governador da Bahia ou ocupar um cargo de maior relevo. O que se viu foi um constante distanciamento e a procura do Rio de Janeiro para superar o desprezo manifestado pelas lideranças dominantes de Salvador e do Recôncavo.
Nas cidades, apenas comércio e serviços. Nada de industrialização. Quando a Bahia resolveu produzir chocolate, escolheu a capital para instalar suas fábricas. As cidades eram quase um prolongamento das fazendas. Aos poucos foram surgindo escolas, hotéis, restaurantes, cabarés e boates. Todos se lembram da menina Malvina (também de Gabriela), que ousou desafiar costumes e práticas sociais. O colégio de freiras em que estudava foi fruto de uma grande negociação envolvendo chefes políticos, o bispo e o poder público. Afinal, os meninos podiam partir para estudar em outras cidades, mas as meninas não podiam fugir do olhar e do controle paternos.
Os rapazes carregavam a expectativa de se tornarem doutores, médicos ou advogados. A maioria não voltava mais. A região cacaueira era vista como uma fonte de renda, não como local de trabalho, transformações ou investimentos. Para as moças de posses estava reservado o destino de seguirem a trajetória materna. A formatura como professora era o limite permitido. Depois disso, só um bom casamento, certamente com alguém do mesmo nível e sob a bênção dos pais. Os doutores forasteiros podiam ser escolhidos, mas eram vistos, em princípio, com muita desconfiança.
Os herdeiros esbanjavam a fortuna acumulada, praticando todo tipo de extravagância. Desfilavam pelas principais cidades brasileiras e até européias. Como Venturinha, de Tocaia Grande, que recebeu em Paris a notícia do falecimento do pai. Estava “no início de uma excursão projetada para se prolongar pelos cabarés e randevus das grandes capitais”.
Os pais autoritários e chefes compenetrados se esbaldavam nos cabarés. O Bataclan foi o mais famoso deles, inesquecível nas páginas de Gabriela, chefiado por Maria Machadão. Mas existiam outros. Para não falar das amantes – “teúdas e manteúdas” – espalhadas pelas roças, fazendas e cidades menores. A poligamia masculina era compreendida, às vezes até respeitada e elogiada, e os padres faziam vista grossa para não desagradar aos financiadores das suas festas e obras. Conta-se que francesas, polacas e argentinas fizeram fortunas.
Os homens ricos não tinham limite de gastos. Bebiam, jogavam e acendiam charutos com notas de quinhentos mil-réis. Seus palacetes eram “sobrados faustosos e mobiliados com luxo, geralmente muito feios, sólidos e pesados, como que representando a solidez das fortunas desses homens que haviam conquistado a terra. Desses palacetes saíam os automóveis caros, quase todos norte-americanos, um ou outro europeu”, descreve Amado em São Jorge dos Ilhéus. Era doce e agradável a vida dessa minoria.
Notícia de riqueza fácil é como rastilho de pólvora. A fama de Ilhéus correu mundo. Os navios chegavam cheios de brasileiros e estrangeiros. Outros se deslocavam em animais ou mesmo em longas caminhadas, todos à procura do dinheiro fácil, do lucro certo. O Nacib de Gabriela e o Fadul Abdala de Tocaia Grande são personagens emblemáticos. A culinária árabe tem na região cacaueira baiana um núcleo forte. Turcos e libaneses chegaram para mercar, ir de fazenda em fazenda vendendo de tudo e aos poucos foram incorporados ao cenário socioeconômico regional. Com o tempo, se misturaram com os alemães e suíços que tinham chegado durante o século XIX. Os sobrenomes atuais representam a grande diversidade do processo de ocupação e desenvolvimento.
O cenário foi mudando com o passar dos anos. A Bahia deixou de ser a maior produtora e exportadora. Os preços oscilavam muito e a competição era cada vez maior. Apareceram doenças nas árvores e nos frutos. E a região começou a perder uma identidade construída ao longo de décadas do século passado. A minoria, que tinha saboreado o lado doce do cacau, mergulhou em dívidas e abandonou fazendas. Os herdeiros viraram as costas para a região. A maioria, que experimentou seu gosto amargo, vagou pelas estradas, buscou outros ofícios nas cidades ou partiu.
Todos carregavam na memória as experiências vividas no lugar que se viu um dia como um eldorado. Hoje restrito às páginas de Jorge Amado.
Antônio Fernando Guerreiro de Freitas é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor da tese Au Brésil. Deux regions de Bahia (1896-1937), Université de Paris IV (Paris-Sorbonne, 1992).
Saiba Mais - Bibliografia:
FALCON, Gustavo. Os coronéis do cacau. Salvador: Centro Editorial e Didático da Ufba. 1995.
FREITAS, A. F. G. M. Literatura e História: o romance regional. Politéia (Vitória da Conquista), v. 5, p. 13-44, 2006.
FREITAS, A. F. G. M., PARAÍSO, M. H. B. Caminhos ao encontro do mundo: a capitania, os frutos de ouro e a Princesa do Sul - Ilhéus (1534-1940). Ilhéus: Editus, 2002.
SOUZA, Antonio Pereira. Tensões do tempo: a saga do cacau na ficção de Jorge Amado. Ilhéus: Editus, 2001.
A Bahia no centro do mundo
Antonio Guerreiro