A barreira entre passado e presente

Nashla Dahás

  • Atas de partidos, cartas abertas “oficiais”, registros de Convenções Nacionais, jornais “de época” com reportagens e notícias que quase se sobrepõem numa desorganização mais ou menos inteligível. É nisso que consiste grande parte da documentação tradicional que permite o estudo das organizações políticas autointituladas revolucionárias, criadas nas décadas de 1960 e 70 no Brasil e no Chile. No Arquivo Nacional brasileiro é possível encontrar vasto acervo iconográfico dos personagens dessa história, homens públicos como Leonel Brizola em diferentes fases de sua vida política, sujeitos menos conhecidos do grande público, como San Tiago Dantas e Celso Furtado, e os jovens anônimos do período: Theotonio dos Santos, José Dirceu, Franklin Martins, entre outros.

    Antes, porém, de se ter acesso às imagens, é preciso agendar a visita. Previamente, breve entrevista, para talvez ajudar a procurar aquilo que se quer ver e que está organizado a partir das pequenas descrições que separam os “fundos”, “catálogos”, ou “códices”. Do mesmo modo, livre-se de tudo o que tem nas mãos, guarde sua bolsa no armário; nada de celulares ou alimentos e, se possível, não deixe seu sapato fazer barulho quando pisar. Numa sala fria, olhe sem fazer estragos no material e, caso queira reproduzir para uso científico ou acadêmico, prepare-se para o processo burocrático que isto implica.

    Poderia continuar listando o desconforto com que venho lidando nesta última década com o mito do historiador que gosta de arquivos. É possível que seja uma questão mais ou menos comum em minha geração já bastante familiarizada com acervos digitais, mas o fato é que, ao navegar por sites chilenos como o do Centro de Estudios Miguel Enríquez (http://archivochile.com/), me sinto tão à vontade entre livros, ensaios, artigos, os citados documentos tradicionais, fotos, cartas, músicas, homenagens, teses, debates, depoimentos, que então se torna possível imaginar como esses homens viveram as suas vidas, como participaram do mundo e foram afetados por seu tempo histórico. Eles compartilharam uma época – a segunda metade do século XX – em que a revolta, a liberdade e o autoritarismo eram temas a povoar a mente das pessoas, estavam presentes nos projetos de Estado e em quase tudo o que era produto das relações humanas. 

    Ao que tudo indica, a atitude oficial do Estado brasileiro ainda é muito dúbia em relação ao seu passado, em sua concepção de história e no que diz respeito à forma como lida com seus lugares de pesquisa. O que se vê por aqui – de maneira geral, pois deve haver exceções – é a construção de prédios modernosos ou a manutenção de prédios aristocráticos, no caso de serem antigos, em que o objetivo acaba sendo o de manter a academia afastada da sociedade, reforça-se o poder do Estado sobre os institutos e os acervos, além de se reproduzir uma história mítica, pacífica, e por isso também trágica, que ainda nega sua memória radical. 

    Nashla Dahás é pesquisadora da Revista de História da Biblioteca Nacional e autora da dissertação “O Comício da Central: Trabalhismo e luta política através da imprensa no Brasil (1961-1964)”,(UERJ, 2010).