A ceia proibida

Angélica Fontella

  • No lançamento do Laboratório, Ziraldo participou da coletiva de imprensa que aconteceu na Casa da Ciência (UFRJ) e depois “visitou” seu trabalho dentro do antigo Canecão. (Foto: Divulgação)Em 1967, o cartunista Ziraldo foi convidado para preencher uma parede de 32m por 6m para alegrar o ambiente da choperia Canecão, na zona sul do Rio de Janeiro. Os seis meses de trabalho, entretanto, resultaram numa condenação pelo regime militar e no encobrimento do painel de cores originais (o próprio autor criou os tons usados). Mais tarde, em obras para ampliar a capacidade do espaço, o desenho foi totalmente escondido por um muro. Depois de todos esses anos sufocada por azulejos e reboco, a obra será restituída à cultura da cidade. E desde o processo de restauro.
     
    A censura ao painel se deveu ao moralismo então vigente: além da menção religiosa, em uma “Última Ceia” regada a cerveja, “a pintura tem arca, cobra com cara safada, mulheres bastante decotadas. Ele brinca com o dia a dia, é colorido, é carioca. À época tudo era transgressor, a subversão estava na cabeça das pessoas do período”, explica Carlos Terra, diretor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ), que coordenará o restauro. 
     
    O “Laboratório Público de Restauro – Mural Última Ceia, de Ziraldo” estará aberto a partir de abril. Iniciativa que só foi possível com a reintegração de posse definitiva do espaço do Canecão pela UFRJ, depois de 39 anos de disputa judicial. “A ideia é que qualquer pessoa possa ter acesso à restauração, talvez com uma passarela, de onde seja possível observar os profissionais trabalhando. Como é feito fora do país em igrejas e palácios”, anuncia o diretor da EBA. 
     
    O trabalho de Ziraldo era bem conhecido dos censores durante o regime de exceção. Ele integrou a equipe de cartunistas de O Pasquim (1969-1991), expoente da imprensa “alternativa”, a princípio “nanica”, mas cujo crescimento e repercussão começou a incomodar. Marcos Napolitano, professor da USP, lembra que “a censura, além de ser considerada ilegítima por artistas e intelectuais (não necessariamente ‘radicais de esquerda’), causava muitos problemas: atrasava o lançamento de produtos culturais ou deformava produtos já prontos, como a edição de um jornal ou uma peça em vias de estrear, por exemplo”.
     
    O Laboratório Público de Restauro faz parte do projeto “UFRJ Carioca” que, em comemoração aos 450 anos da cidade, promoverá cerca de 60 eventos ao longo do ano, coordenados pelo Fórum de Ciência e Cultura. O diretor do Fórum, Carlos Vainer, destaca que a função principal da iniciativa é cumprir o compromisso da universidade de devolver ao Rio todo aquele espaço para uso da arte, da música, da cultura em geral. O ex-Canecão é propriedade da UFRJ, mas patrimônio da cidade.