- Em meio a inúmeros compromissos como comerciante, empreendedor e decorador, Frederico Antonio Steckel (1834-1921) encontrava tempo para se dedicar à pintura de cavalete. Fosse por gosto ou para atender a alguma encomenda, esta pequena parcela de sua produção merece ser conhecida, principalmente as obras que retratam paisagens dos primeiros anos de uma capital recém-construída da recém-fundada República: Belo Horizonte.A presença de Steckel na história da arte brasileira deve-se, essencialmente, aos trabalhos de pintura e acabamento decorativo realizados em palácios, prédios e residências. Nascido em Dresden, na Alemanha, ele se transferiu para o Brasil em algum momento de meados do século XIX e estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde viveu por cerca de 30 anos, tendo a arte decorativa como principal ocupação. Em 1896, aos 62 anos de idade, recebeu o convite que inauguraria uma nova fase em sua carreira. O engenheiro-chefe da Comissão Construtora da Nova Capital, Francisco de Paula Bicalho (1847-1919), convocou-o para coordenar as obras de acabamento das principais edificações então erguidas em Belo Horizonte: o Palácio Presidencial e os três prédios das secretarias, na praça da Liberdade. Quando lá chegou, em janeiro do ano seguinte, Steckel encontrou um fervilhante canteiro de obras. Antes responsável pela ornamentação de palácios e edifícios na sede do acabado Império, via-se agora diante de outra realidade: interpretar as propostas estéticas da emergente República.A mudança da sede do governo de Ouro Preto para outro local havia sido determinada já na primeira Constituição Mineira, promulgada em 15 de junho de 1891. Planejada pelo engenheiro Aarão Leal de Carvalho Reis (1853-1936) e construída pelo seu sucessor Francisco de Paula Bicalho, a nova capital foi erguida no curto período de quatro anos, sobre os terrenos do arraial do Belo Horizonte, antigo Curral d'El-Rey. A missão republicana dos governantes mineiros seria cumprida duplamente: fazia-se desaparecer a memória colonial e provincial da localidade e, ao mesmo tempo, implantava-se a mais moderna concepção urbanística no país, uma cidade planejada para o século XX.A inauguração deu-se em 12 de dezembro de 1897, mas o decorador Frederico Steckel prosseguiu desenvolvendo seu trabalho especializado. Enquanto isso, mantinha viva a prática da pintura de cavalete, com predileção pela paisagem. É o caso de Vista dos prédios das secretarias da praça da Liberdade, tela dedicada ao engenheiro Francisco de Paula Bicalho e datada de 1900. A cidade acabava de sair do papel. Na esplanada da praça, os edifícios projetados pelo engenheiro pernambucano José de Magalhães (1851-1899) revelam sua importância. O prédio da Secretaria do Interior é logo notado por apresentar na cobertura uma cúpula em meia-esfera de interior azul, que acolhe e dá destaque celeste ao busto feminino da República. Na fachada, no corpo central avançado, utilizou-se, nas colunas e nos três portais em arcos, o granito de tom escuro extraído na vizinha pedreira do Acaba-mundo, compondo um esperado contraste com a cor clara que reveste todo o edifício. À sua direita, pode-se perceber tão somente uma faixa lateral da Secretaria das Finanças. E no espaço livre entre os dois prédios, voltada para a rua da Bahia, a construção originalmente destinada à Imprensa Oficial, já na época modificada internamente para abrigar a Chefia de Polícia. O edifício da Secretaria de Agricultura é visto por inteiro, pelo lado posterior, onde se descobre, em estágio primitivo, a rua de Sergipe. Recém-inaugurada, a Secretaria exibia sua planta arquitetônica original, sem as intervenções que mais tarde deturpariam o projeto – com a construção de um novo pavimento e acréscimos nas laterais.Todos esses prédios receberam obras de acabamento e decoração do artista, que os retratou em tela. À esquerda da Secretaria da Agricultura vê-se um galpão baixo provisório, testemunho das obras que prosseguiam em execução depois de inaugurada a capital. É possível que fosse este o espaço de almoxarifado e oficina de trabalho conhecido, na época, como “galpão do Steckel”.Cortando na diagonal, a avenida do Brasil tem aspecto de um simples caminho aberto, por onde transitam algumas pessoas e animais miniaturizados. Bonito mato precede a vista, tendo o complemento de uma árvore frondosa. Na lateral esquerda, nota-se um trecho da rua Claudio Manoel: encontrava-se aberta na largura planejada mas ainda sem calçamento, dispondo de uma linha de postes na faixa central. O pintor deu-se ao detalhismo de retratar as finas estacas de mudas de árvores recém-plantadas, de um lado e do outro.
Naqueles dias, em março de 1900, a prefeitura determinara, em seu plano de melhoramentos, o ajardinamento da praça da Liberdade, bem como o término da arborização de ruas e praças. Ausentes na pintura de Steckel, devem ser evocados os jardins inspirados nas propostas estéticas de Paul Villon (1841-1905), arquiteto-jardineiro da Comissão Construtora e da Prefeitura, à época conduzindo trabalhos no Rio de Janeiro – depois de deixar concluídos os principais projetos de arborização, canteiros, pontes rústicas e lagos destinados ao parque municipal e às praças da capital.
Steckel vivia um período de intensa produtividade em Belo Horizonte. Artista de sólida formação, tinha também disposição e tino para os negócios: aproveitando-se do mercado aquecido da cidade em construção, fundou um estabelecimento para o comércio de produtos artísticos e material de acabamento. Sua especialidade tinha demanda certa. Com boa influência na sociedade, criou e presidiu uma associação recreativa chamada Club das Violetas, com sede na casa construída por ele, conhecida como Palacete Steckel, à rua dos Guajajaras, 176, bem próximo à avenida da Liberdade. Ali promovia palestras, serões literários e recitais musicais. Em 1901, o Palacete abrigou uma importante exposição coletiva de Belas Artes, evento pioneiro de muita repercussão que contou com sua organização pessoal. Steckel participou de outras exposições de Belas Artes na capital, e foi um dos artistas representantes de Minas Gerais na Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos, em 1904.Dessa época datam os quadros Uma pedreira, 1901; Uma casa no subúrbio e Panorama de Morro Velho, 1903. Na tela Vista da avenida João Pinheiro, de 1908, ele retrata um local não muito distante da praça da Liberdade. Em princípio nomeada avenida da Liberdade, esta importante via teve seu nome alterado, naquele mesmo ano, numa homenagem a João Pinheiro da Silva, presidente de Minas Gerais. falecido em 25 de outubro. Seu traçado cumpre a ligação direta entre a praça da República (atual praça Affonso Arinos, inteiramente desfigurada) e a praça da Liberdade, onde se estabeleceu a sede do Poder Executivo. Essa toponímia de origem, pautada pelo simbolismo, diz muito sobre o pensamento político dos membros da Comissão Construtora que formularam a planta da cidade. A avenida da Liberdade recebeu, estrategicamente, na via ascendente em direção ao Palácio Presidencial, edificações das residências destinadas aos secretários de estado. Pelas cercanias, no bairro dos Funcionários e adjacências, surgiram construções particulares que se tornaram também marcos arquitetônicos da época, como o Palacete Steckel.No primeiro plano de Vista da avenida João Pinheiro tem-se a vegetação característica dos campos, uma herança do Curral d'El-Rey, resistente por muitos anos nos lotes vagos da cidade. Na faixa lateral esquerda eleva-se uma árvore de porte, que favorece a profundidade daquilo que se mostra na vista recuada. Percebe-se, então, o cuidadoso tratamento do pintor para detalhes das residências que ali despontavam – como as fachadas e o tom avermelhado das telhas que cobrem as casas, em meio a generosos quintais, algo entre a remanescente atmosfera dos pomares rurais e o ambiente citadino moderno. Ao fundo, o olhar repousa nos morros ondulados e leves do contorno da cidade.Colocados lado a lado, os dois quadros mostram a primeira e nova paisagem de Belo Horizonte, evidenciando aspectos da arquitetura e do espaço urbano propostos no programa original da Comissão Construtora. Revelam, ainda, o permanente interesse de Frederico Steckel em registrar o progresso da cidade que ajudava a construir. A capital que nascia com a República.Ricardo Giannetti é autor de “Um músico brasileiro em Bayreuth”. In: Charles Baudelaire, Richard Wagner e Tannhäuser em Paris (Autêntica, 2013).Saiba Mais:BARRETO, Abílio. Belo Horizonte. Memória histórica e descritiva. História média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995.GOMES, Leonardo José Magalhães. Memória de Ruas: Dicionário Toponímico de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Crisálida, 2008.GOUVEIA, Maria de Lourdes Caldas. A matéria da memória: o Palácio como símbolo da cidade. Belo Horizonte: Cuatiara, 2009.PENNA, Octavio. Notas Cronológicas de Belo Horizonte (1711-1930). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997.
A cidade é a tela
Ricardo Giannetti