Salvador, agosto de 1672. Pelas portas da cidade entra um impressionante cortejo. À frente vem um chefe paulista, Estevão Ribeiro Baião Parente, contratado pelas autoridades coloniais para debelar a ameaça indígena que acometia as vilas baianas. Em seguida, seus comandados, portando armas de fogo e usando capacetes ornados com plumas de papagaios e araras. Por fim, o grosso do grupo: 600 índios capturados, guardados por cabos e capitães da tropa paulista. Os homens índios nus, os corpos pintados de azul, alguns cobertos por plumas brancas, carregando arcos e flechas. As mulheres com genitálias tapadas com flocos de ervas, portando aljavas, pequenas mochilas para carregar flechas.
As guerras de conquista de espaços ocupados pelos indígenas para a instalação das frentes pioneiras, que marcaram o sertão baiano a partir de meados daquele século, foram um dramático capítulo da formação territorial brasileira.Os índios trazidos por Baião Parente, “governador da conquista dos bárbaros”, eram maracás e habitavam uma região distante 300 quilômetros do litoral, banhada pelo rio Paraguaçu. Como eles, milhões de indígenas viviam fora da faixa costeira. Os tupis do litoral os chamavam de tapuias – o que significava “bárbaros” ou “o contrário” – e esta denominação foi adotada também pelos portugueses.A ação dos paulistas no médio Paraguaçu era concomitante com outras iniciativas semelhantes, empreendidas por sertanistas de diversas procedências no que se conhecia como sertão baiano: uma área que se estendia do sul do atual Piauí ao norte das Minas Gerais, cruzando a porção central da Bahia, a leste e a oeste do vale do São Francisco. Apesar de sua vastidão, a região tinha características geofísicas e históricas comuns. Os campos homogêneos, as colinas baixas, a vegetação de caatinga e cerrado e a rede hídrica formavam uma extensa superfície, que se revelaria a mais adequada para a expansão da pecuária bovina, valendo-se de grandes pastagens naturais.Aventureiros e pequenos empreendedores que não tinham espaço na faixa costeira, em São Paulo ou no reino passaram a olhar para o sertão baiano como área privilegiada para a implantação das fazendas de gado – os famosos “currais”. No caminho, porém, estavam os povos indígenas. Considerados obstáculos à expansão colonizadora, eles deveriam ser sumariamente removidos.O processo de conquista envolveu sertanistas reinóis, baianos e, em especial, paulistas. Duas razões explicam a predominância daqueles que vinham da capitania de São Vicente. A primeira diz respeito a um processo secular de hibridização, que havia formado nas vilas paulistas uma população fortemente mestiçada, com elementos étnicos portugueses e tupis. A herança indígena dotou os mamelucos paulistas de recursos técnicos e culturais necessários à vida nos sertões, tornando o sertanismo quase uma vocação entre eles. A segunda razão se relaciona às restrições econômicas, geográficas e demográficas. Distante dos centros econômicos da época – o Recôncavo Baiano e o litoral pernambucano – e portanto fora do circuito agroexportador do açúcar, a capitania de São Vicente contava com uma população comparativamente pequena: em fins do século XVII, enquanto Salvador tinha 30 mil habitantes e Recife 20 mil, a vila de São Paulo era um núcleo de apenas 3 mil indivíduos.A captura de plantéis indígenas para escravização nas lavouras da costa nordeste e das próprias vilas paulistas revelou-se, desde muito cedo, a alternativa econômica mais interessante para São Vicente. Índios vinham sendo utilizados, desde o primeiro século de colonização, como mão de obra escrava para tocar os empreendimentos agrícolas do litoral nordestino, concentrados na monocultura da cana-de-açúcar para exportação, e da região paulista, onde se plantava trigo para o mercado interno. Quando os contingentes indígenas começaram a escassear no litoral, os traficantes de escravos se voltaram para o interior ainda pouco explorado. Paulistas caçadores de índios percorreram e exploraram o sertão baiano, abrindo caminho para as frentes pecuárias.Além do apresamento de índios e da conquista de terras para o avanço das frentes pioneiras, dois outros objetivos mobilizavam os sertanistas: a busca de riquezas minerais e as recompensas pela participação em tropas mercenárias de combate a grupos indígenas hostis. A localização de jazidas de ouro, prata e pedras preciosas era uma obsessão entre os conquistadores ibéricos desde o primeiro século da ocupação da América. As reservas de ouro e prata encontradas pelos espanhóis do outro lado do continente estimulavam os lusos à pesquisa mineral em sua porção da América. Sertanistas mais experientes eram frequentemente contratados pelas autoridades coloniais para as guerras contra os povos indígenas que habitavam os sertões. Entre as principais recompensas materiais e simbólicas que recebiam da Coroa havia ganhos em dinheiro, terras, plantéis indígenas e mercês.Os participantes dessas expedições ao interior – as chamadas entradas – tinham que lidar com um meio hostil. O conjunto de perigos e dificuldades a que se expunham os sertanistas era interminável: serras empinadas e fragosas, campos homogêneos e expostos ao sol, travessias de terrenos estéreis e sem água, rios caudalosos ou de águas pestilentas, animais perigosos, pragas e insetos daninhos, doenças e males do corpo. E, principalmente, os grupos indígenas hostis, espalhados de forma generalizada pelo interior da colônia, que cronistas e autores de documentos oficiais distinguiam pela coragem e tenacidade com que se defendiam dos invasores luso-brasileiros.
O extremo sul dessa região, hoje norte de Minas Gerais, foi outra das áreas de ação dos sertanistas. Na década de 1680, o paulista Matias Cardoso de Almeida se estabeleceu numa parte remota do vale do São Francisco, próxima de sua confluência com o rio Verde Grande. Os paulistas rechaçaram os índios, estabeleceram um arraial e ergueram uma igreja. Naquela zona de fronteira entre os territórios tapuia e luso-brasileiro, no entanto, o perigo da reação indígena era constante. Índios rebelados contra a invasão já haviam destroçado as forças luso-brasileiras em várias ocasiões e em diferentes regiões do interior. A “Guerra dos Bárbaros”, o maior desses movimentos de resistência, foi uma série de rebeliões ocorridas entre 1651 e 1720, nas quais os tapuias chegaram a ameaçar núcleos litorâneos do Recôncavo Baiano, do Rio Grande do Norte e do Ceará. Por isso, igrejas como o templo erguido pelos paulistas no arraial de Matias Cardoso tinham outra função além da devoção religiosa: eram estruturas defensivas contra os ataques de nativos. A igreja de Matias Cardoso foi dotada de paredes grossas, pesadas portas almofadadas e uma mureta de pedra que protegia o adro. Nas torres, foram abertos orifícios de vigilância. Uma passagem subterrânea ligava o fundo da sacristia a uma edificação próxima, servindo para a fuga em caso de ataques.No outro extremo do sertão baiano atuava o sertanista português Domingos Afonso Sertão. Partindo das suas fazendas nas margens do São Francisco, em 1674 ele invadiu os territórios tapuias a oeste do rio, chegando ao sul do atual estado do Piauí. Ali, o conquistador estabeleceu a primeira fazenda de gado da região, que em 1697 foi escolhida pelos moradores pioneiros para abrigar a Igreja de Nossa Senhora da Vitória. Em 1712, a povoação foi elevada a vila, para mais tarde se tornar a atual cidade de Oeiras, constituindo o núcleo urbano pioneiro do Piauí.Em 1750, diplomatas portugueses e espanhóis se assentaram para negociar o Tratado de Madri. O redesenho territorial brasileiro é oficialmente reconhecido e refeitos os limites entre as áreas portuguesa e espanhola na América, vigentes desde o Tratado de Tordesilhas, de 1494. A partir de então, o Brasil passa a ter uma silhueta muito próxima da atual. Por trás daquele novo tratado estava um século de avanço sertanista rumo ao interior do subcontinente. Um movimento que ocorreu de forma descontínua, irregular e conflituosa, mas que definiu as fronteiras internas e as formas de ocupação do território colonial.Márcio Roberto Alves dos Santos é autor de Bandeirantes paulistas no sertão do São Francisco: povoamento e expansão pecuária de 1688 a 1732 (Edusp, 2009) e da tese “Fronteiras do sertão baiano: 1640-1750” (USP, 2010).Saiba MaisABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br.CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/ Secretaria Municipal de Cultura/ Fapesp, 1992.HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec/ Editora da Universidade de São Paulo/ Fapesp, 2002.SOUZA, Laura de Mello e. “Formas provisórias de existência, a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações”. In: ___ (org.). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
A conquista dos sertões
Márcio Roberto Alves dos Santos