A cura pela natureza

  • Clique para ampliarEste texto é parte de um conjunto documental denominado Formulário Médico, datado de 1703. Foi encontrado em uma arca, na antiga Igreja de São Francisco, em Curitiba. É atribuído aos jesuítas e hoje está sob a guarda da Biblioteca de Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Contém a identificação de centenas de doenças, sempre seguidas de um receituário com tratamentos usados desde o século XVI, baseados na diversidade da flora e da fauna brasileiras, com forte influência indígena da etnia dos keriris.

    O documento integra um conjunto encadernado posteriormente. Seu material é um ótimo papel de trapo, a letra é do tipo humanística do século XVII, de boa leitura, mas com tipicidades próprias como e, f, L , h e r. As penas usadas foram sempre as de aves. A letra é dextrogira, com bom ductus, traçado uniforme e de origem hológrafa (escrita por uma só mão ou pessoa). O Formulário Médico possui 227 páginas, escritas com tinta ferrogálica, que eventualmente danifica o papel e até ultrapassa para o verso da página. Os títulos dos capítulos e das receitas são escritos com belas letras e de grande módulo. O uso de letras maiúsculas e minúsculas é indiferenciado, não seguindo uma norma.

    Algumas vezes, há a união indevida de palavras, prática corriqueira até o século XIX, assim como o pequeno uso de acentos agudos e emprego intenso de circunflexos, de forma diferenciada, para dar tonicidade às silabas. Os numerais são sempre arábicos. Há algumas expressões latinas e palavras dos keriris. Os documentos têm altura de 410 mm por 280 mm de largura. Seu estado de conservação é bom, mas eles têm apagamentos de palavras, frutos do manuseio.

    João Eurípedes FranklinLeal é professor Livre Docente de Paleografia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e autor de Noções de Paleografia e Diplomática (Editora da UFSM, 2015).

    Para todos os males

    As receitas do Formulário Médico variam de fórmulas ainda hoje usuais até estranhas composições, como fezes de animais ou humanas, urina, insetos e cinzas. A receita aqui exposta é uma Triaga brasileira, considerada o medicamento mais antigo produzido na América portuguesa, situada na página 72 do manuscrito. Triagas ou teriagas, denominações usadas desde o século XVI, eram medicamentos que podiam ter até 63 elementos em sua composição. Foram utilizados como panaceia ou antídoto para dezenas de males e como complemento de remédios para reforçar a cura. Serviam também para prevenir doenças e contra mordidas de animais venenosos. Sua invenção é atribuída a Andrômaco de Creta, médico do imperador romano Nero, e manteve-se em uso até o século XVIII. Havia variadas receitas de Triaga, e sua composição costumava ter ares de segredo pessoal entre físicos ou médicos. A composição da Triaga Brazilica devia incorporar elementos de origem europeia combinados com produtos da terra. Não se sabe ao certo os elementos utilizados, pois sua receita original se perdeu por ser secreta.

    Solução do “Decifre”

                                         Triaga Brazilica

    Noticia do Antidoto ou Nova Triaga Brazilica q. se faz no

    Colégio da Companhia de Jesus da Bahia / e Ryo de Janeiro/ com

    As virtudez e propriedades della , já espirimentadaz

    de 15 annos para câ em varias enfermidadez

    A Triaga Brazilica hê hum Antidoto, ou Panacêa, composta á imitação

    da Triaga de Roma e de Veneza, e de varias plantas, Raizes, ervas, e drogas do

    nosso Brazil, q.  a natureza dotou de tão excellentes  virtudez  q. cada huma

    por si sô pode servir em lugar da Triaga da Europa, pois com algumas das Ra=

    izes. de q. se compoem este Antidoto , se curão os Brazis de qualquer peçonha e

    mordedura de animaez  venenozoz  como tambem  de outras enfermidadez  só

    com mastigallas: e a experiência tem mostrado de 15 annos para câ, que se

    não hê melhor q. a Triaga da Europa, ao menos não lhe hê inferior em couza

    alguma; porque hê efficassissimo contra todo o veneno/ exceto os correzivos/

    como hê solimão, e outroz semelhantes causticoz , ainda q. contra estes da=

    do Logo o peso de 1 até 2//8.az ajuda a oz expellir com vomitoz, e depois com Reme=

    dioz anodînos, q. se costumão applicar a Semelhantes venenos , faz a cura

    maiz fácil e maiz Segura.

    Serve contra qualquer bebida de veneno, ou ervas frias, e venenosas mor=

    deduras de cobras e outroz animaes peçonhentoz tomando pella  boca o pezo=

    de 1 até 2//8.az em vinho, caldo ou em qualquer  couza potável e isto de 4 em 4

    horas, atê se sentir aliviado o enfermo; untando lhe tãobem com ella os pul=

    soz , nariz, e coração e posta na mordedura a modo de emplasto desfeita em Vinho,

    ou sumo de Limão.

    Serve taobem para qualquer dor intrínseca, como de estomago vomitoz , colica,

    flatoz, e pontadaz , principalmente se forem cauzadaz de frio: para Lom=

    brigaz, e qualquer humor corrpto, q. se gera noz intestinoz hê Remedio: e

    para estancar camaras: para dores de Rins, bexiga, Arêa e pedra, porque

    hê diuretica e faz  ourinar; usando a miudo couza de meia//8.a em aguas

    apropriadas a estas doençaz.

    Serve maiz para qualquer achaque da cabeça, cauzado de intemperança fria,

    Paralezia, Epilepsîa, Apoplexîa, Melancolîa  aplicando juntamente os Re=

    medioz  geraes, q. se costumão. Hê boa para a putrifação do ár, contra as do=

    enças e epidêmicas: nas febres malignas tem mostrado grande efficacia , to=

    mada Logo 1//8.a em agua de cardo santo, ou outra qualquer agua cordeal,

    e isto 3 ou 4 vezes no dia. O mesmo faz nas bexigas, sarampão, ajudan=

    do á natureza a expellillas para fora, corregindo a mâ qualidade do=

    humor corrupto. E aSim mesmo tomando a em tempo de Bexigaz,

    ou de outras doenças populares, e epidamiças, todas as menhaãs em

    pezo, em quantidade de meia //8.a, serve para a prezervacão. Hos  q. uzavão

    della nestes tempoz, ou não tiverão Bexigaz nem febres malignaz.

     

    Versão em linguagem atual:

     

    Triaga Brazílica

    Notícia do antídoto ou nova triaga brasílica que se faz no

    Colégio da Companhia de Jesus da Bahia (e Rio de Janeiro) com

    as virtudes e propriedades dela, já experimentadas

    de 15 anos para cá em várias enfermidades.

    A Triaga Brazílica é um antídoto, ou panaceia, composta à imitação

    da Triaga de Roma e de Veneza e de várias plantas, raízes, ervas e drogas do

    nosso Brasil, que a natureza dotou de tão excelentes virtudes que cada uma

    por si só pode servir em lugar da Triaga da Europa, pois com algumas das raí

    zes de que se compõe este antídoto, se curam os brasis de qualquer peçonha e

    mordeduras de animais venenosos como também de outras enfermidades só

    com mastigá-las e a experiência tem mostrado de 15 anos para cá, que se

    não é melhor que a Triaga da Europa, ao menos não lhe é inferior em coisa

    alguma, porque é eficassíssimo contra todo o veneno (exceto os corrosivos)

    como é solimão e outros semelhantes cáusticos, ainda que contra estes da-

    do logo o peso de 1 até 2/8as ajuda a expeli-lo com vômitos e depois com remé-

    dios anódinos, que se costumam aplicar a semelhantes venenos, faz  a cura

    mais fácil e mais segura.

    Serve contra qualquer bebida de veneno, ou ervas frias e venenosas mor-

    deduras de cobras e outros animais peçonhentos tomando pela boca a peso

    de 1 até 2/8as. em vinho, caldo ou em qualquer coisa potável e isto de 4 em 4

    horas até se sentir aliviado o enfermo, untando-lhe também com ela os pul-

    sos, nariz e coração e posta na mordedura a modo de emplasto desfeita em vinho

    ou sumo de limão.

    Serve também para qualquer dor intrínsica, como estômago, vômitos, cólica,

    flatos e pontadas, principalmente se forem causadas de frio, para lom-

    brigas e qualquer humor corrupto, que se gera nos intestinos é remédio, e

    para estancar câmaras, para dores de rins, bexigas, areia e pedra, porque

    é diurética e faz urinar, usando a miúdo coisa de meia 8a. em águas

    apropriadas a estas doenças.

    Serve mais para qualquer achaque da cabeça, causado de intemperança fria,

    paralisia, epilepsia, apoplexia, melancolia aplicando juntamente os re-

    médios gerais, que se costumam. É boa para a putrefação do ar, contra as do-

    enças e epidêmicas, nas febre malignas tem mostrado grande eficácia, to-

    mada logo 1/8a. em água de cardo santo ou outra qualquer água cordial,

    e isto 3 ou 4 vezes no dia. O mesmo faz nas bexigas, sarampão, ajudan-

    do a natureza a expeli-las para fora corrigindo a má qualidade do

    humor corrupto. E assim mesmo tomando-a em tempo de bexigas,

    ou de outras doenças populares e epidêmicas, todas as manhãs em

    peso, em quantidade de meia 8a., serve para a preservação. Os que usavam

    dela nestes tempos, ou não tiveram bexigas nem febres malignas.