“Eu estava no rio, com a água pela cintura, quando vi um ‘trem’ debaixo de um barranco, mas não sabia o que era. Ele mergulhou e sumiu... De repente, ele me mordeu. Eu dei uma puxada na perna e ele se afastou pro outro lado”. Assim foi o primeiro encontro de Antônio Felipe de Rezende com o “caboclo d’água”, monstro do qual ouviu falar durante toda a vida, ao longo de seus 83 anos. Ele diz que a história aconteceu há cerca de três anos no Rio do Carmo, que corta a pequena e isolada Barra Longa, a 100 quilômetros de Ouro Preto, em Minas Gerais. O bicho tem chamado tanta atenção que no ano passado ganhou uma estátua no portal da cidade.
O medo parece tomar conta de Barra Longa.Tem gente se mudando para casas distantes do rio e time de futebol adiantando o horário das partidas para não coincidir com os ataques, geralmente no fim da tarde. No entanto, quem se arriscar pode receber uma boa recompensa. A Associação dos Caçadores de Assombrações e Monstros (Acam), com sede em Mariana, está oferecendo R$ 10 mil para quem capturar ou tirar uma foto do caboclo. “Nós criamos a associação em 2008 mais por causa dele. Já fizemos duas grandes caçadas em grupo e devemos fazer outra. Colocamos armadilhas nas pontes, rede com arataca e feromônio com cheiro de carne forte para atraí-lo”, conta Vicente de Oliveira, chefe de segurança da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e membro da Acam.
Para ajudar nas buscas, foram feitos retratos falados baseados nos depoimentos de algumas das mais de 50 testemunhas. “Ele tem 1,20 metro, é cabeludo e escamoso. As mãos e os pés são de réptil, a cabeça é de lagartixa, a boca parece um bico e tem dentes fininhos. Vi ele comendo um dos meus bezerros. Joguei uma pedra, ele deu um grito e foi para a água. Fiquei com medo demais”, diz Mucci Daniel Kfuri, sócio do açougue da cidade.
A Acam se mantém com o auxílio dos mais de 30 associados espalhados por Ouro Preto, Mariana, Diogo de Vasconcelos, Acaiaca, Barra Longa, Catas Altas e Santa Bárbara. Juntos, eles reúnem relatos publicados quinzenalmente no jornal O Espeto. E não faltam histórias pra contar. Dizem que lá há gigantes, andando sempre perto das minas de ouro, um boi com cara de gente, o chamado homem-porco e o “lobisomem pezão”, que teria atacado um rapaz.
Muitos garantem acreditar nessas histórias. Contam até que um ex-prefeito de Diogo de Vasconcelos bateu no homem-toco, monstro que atacaria viajantes colocando raízes no caminho para provocar quedas. Seria tudo invenção ou alguma dessas histórias teria uma base real? “Muitos animais aparecem mortos perto do rio. Não podemos dizer que não tem nenhum bicho desconhecido matando esses animais. E muitas pessoas, principalmente idosas, nos procuram para falar sobre o que viram e pedem para não divulgarmos. Alguma coisa elas viram”, afirma Leandro Henrique dos Santos, professor de inglês na rede pública de Mariana, aluno de História da Ufop e membro da Acam.
Seja o que for que essas pessoas viram, elas não estão sozinhas. O desconhecido vem gerando monstros – ou seja, seres fantásticos, amedrontadores e sem classificação biológica – há milhares de anos. A criptozoologia é o campo que estuda essas criaturas em que muita gente acredita, mas não tem como provar se realmente existem. Alguns objetos de estudo famosos são o monstro do Lago Ness, na Escócia, o Pé Grande, na América do Norte, e o chupa-cabra, cujos relatos começaram a surgir em 1992 em Porto Rico e depois se espalharam pelo resto da América.
Aqui no Brasil, as primeiras criaturas consideradas monstruosas foram descritas ainda na época dos descobrimentos. Eram animais tropicais como o tatu e o gambá, que não se assemelhavam a nenhum animal conhecido pelos europeus. Afonso Taunay cita em Zoologia Fantásticado Brasil (1917) a existência de morcegos gigantes em várias partes das Américas: “Tremiam os pobres filhos das selvas com a ideia do encontro desses imensos vampiros que ainda por mal de pecados dos nossos desprotegidos semelhantes viviam aos bandos e eram sobretudo agressivos.”
Nos séculos seguintes aos descobrimentos, outros monstros foram criados com função definida: advertir e castigar. É o que afirma Julio Jeha, professor de Literatura da UFMG e organizador do livro Da fabricação de monstros (UFMG, 2009): “Na colônia, quando as pessoas nem sempre se enquadravam nas regras morais ditadas pela Igreja, as mulheres que se relacionassem com os padres eram ameaçadas de se transformarem em mulas sem cabeça”, explica.
O próprio caboclo d’água pode ter surgido para estabelecer alguns limites. Este é o palpite de Milton Brigolini, professor de Engenharia da Ufop e membro da Acam. “A história é muito antiga, deve ter começado para evitar que as crianças tomassem banho no rio, porque é perigoso. Mas as pessoas foram espalhando os relatos... Elas são muito criativas e contam tudo com a maior certeza do mundo. Deram força à história”, afirma.
A imaginação da população foi longe em todo o Brasil. Na Amazônia não faltam exemplos, como o mapinguari, um grande macaco de pelos longos e invulneráveis a bala, e a boiúna, cobra gigantesca que se transforma em uma embarcação. Boiúna, aliás, também é conhecida como cobra-grande, e aparece no poema modernista Cobra Norato (1931), de Raul Bopp.
Já no Nordeste, até hoje são comuns as histórias sobre o “papa-figo”, que se alimentaria do fígado de crianças, a cobra monstruosa de Triunfo, a 400 quilômetros de Recife, e o “negro d’água” da região do Rio São Francisco, que deve ser parente do caboclo de Barra Longa. Mas bizarra mesmo é a lenda da “perna cabeluda”. “Dizem pelo Recife, desde os anos 1970, que uma perna pula pelo meio da rua, à noite, em busca de vítimas para chutar. Essa história já foi muito contada pela literatura de cordel”, diz o jornalista e pesquisador Roberto Beltrão.
Outro monstro comum no Nordeste é o lobisomem. Mas não é coisa de gente do interior, não. Em Recife, tem quem não arrisque a sair à noite. “Há uns dois anos, diziam que havia um lobisomem no bairro do Cajueiro-Seco. Já disseram também na periferia que uma criatura assim estava arranhando as mulheres... Essa história é muito forte aqui. O boato propaga todo esse medo. Mas, muitas vezes, o mito serve para manter a ordem, estabelecer limites, fazer com que as pessoas não fiquem na rua até tarde”, diz Rúbia Lóssio, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco e coordenadora do Centro de Estudos Folclóricos Mário Souto Maior.
Inspiração não falta para a criação de novos monstros. Até as crianças têm as histórias do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, em livro e na televisão, com personagens como a Cuca e a mula sem cabeça. “Lobato trata o assunto de maneira amena. Mas geralmente aprendemos desde cedo, na escola, que os monstros são mitos. Nossa experiência de terror não foi muito levada a sério. No cinema, por exemplo, Zé do Caixão é o principal nome, mas não temos um filme sobre monstro. Talvez porque nossos monstros não assustem tanto”, comenta Simone do Vale, jornalista e ex-professora de História do Cinema de Horror na UFRJ.
Essa maneira diferente de lidar com os monstros se reflete também nas novelas, até quando o assunto é vampiro, personagem clássico de filmes de terror. “As novelas ‘Vamp’ (1991) e ‘OBeijodoVampiro’ (2002) trataram de um jeito irreverente o clássico da literatura universal. Trouxeram para a contemporaneidade um tema secular e conquistaram novas gerações”, diz Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela USP e autor de A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil (Senac, 2002).
Apesar de não terem força no cinema nacional, os monstros fazem sucesso nas telonas no resto do mundo. Boa parte dos filmes em que são os astros principais, como “Frankenstein” (1910) e “Nosferatu” (1922), saiu da literatura gótica inglesa, do final do século XVIII. Já outros personagens, como o Corcunda de Notre Dame, vieram com o Romantismo. “Os monstros passam a ter um interior bom; eles ganham essa complexidade, mas aqui no Brasil a literatura romântica foi fraca nesse sentido. Não me lembro de livros sobre um monstro específico nem em outros momentos. Aqui, esse assunto é mais comum na literatura regionalista, no cordel”, diz Alcir Pécora, professor de literatura da Unicamp.
Algumas das histórias tradicionais de monstros no cordel são Juvenal e o Dragão, João Acaba-Mundo e a Serpente Negra, e O príncipe Oscar e a Rainha das Águas. “É muito comum ter monstros. É de longe que vem essa tradição. Os leitores gostam desse tipo de fantasia”, afirma Gonçalo da Silva, presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.
Seja no cordel, seja em histórias que correm de boca em boca, os monstros continuam a ter forte presença na cultura popular.Quem nunca ouviu um “Nana neném, que a cuca vai pegar”? Caboclos d´água, curupiras e cucas assustam, mas também dão limites e são encarados com familiaridade, fazendo parte do dia a dia. Às vezes, até em cantigas de ninar.
Saiba Mais - Bibliografia
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global, 2001.
JEHA, Julio. Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
Saiba Mais - Internet
Jornal O Espeto: www.oespeto.com.br
Conheça monstros de outras regiões do Brasil e do mundo no site da RHBN: www.rhbn.com.br
Leia sobre filmes clássicos de monstros na seção CineHistória, no site da RHBN.
A fantástica vida real
Cristina Romanelli