Rios caudalosos, florestas impenetráveis, tribos indígenas desconhecidas e histórias de animais gigantes que se alimentam de seres humanos. Um cenário assustador para a maioria, mas perfeito para aventureiros em busca de fama e riqueza no final do século XIX e início do XX. Foi nessa época que a Amazônia recebeu milhares de trabalhadores para a indústria de extração da borracha e para a construção de uma ferrovia de quase 400 quilômetros, que escoaria essa produção cortando os rios Madeira e Mamoré, a oeste do atual estado de Rondônia.
Cem anos depois da inauguração da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), Rondônia está em ritmo de festa. Vários eventos no estado comemoram o centenário, e a ferrovia é candidata a Patrimônio Mundial da Unesco. Toda a festança, no entanto, parece esquecer que agora também se completam 40 anos que a EFMM foi desativada e quase acabou num ferro-velho. Nas últimas décadas, trilhos foram furtados, estações estão caindo aos pedaços, e as locomotivas formam um cemitério em Porto Velho. Para completar, estão sendo construídas na região as usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, acusadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de cobrirem com água parte do patrimônio e não seguirem fielmente as medidas indicadas pela instituição e pelo Ibama para compensar o impacto das obras.
Quase todas as 22 medidas compensatórias financiadas pelas usinas são relacionadas à recuperação do patrimônio ferroviário e estão sendo fiscalizadas a duras penas pelo Iphan. Segundo Beto Bertagna, superintendente do órgão em Rondônia, o principal problema é a usina de Jirau, responsável por mais de metade das medidas. “Até agora eles não cumpriram o cronograma e estão contestando as medidas acordadas anteriormente. Por isso, o Ministério Público de Rondônia e o Ministério Público Federal propuseram, no dia 17 de julho, uma ação com pedido de liminar para que o Ibama não emita a licença de operação para a empresa operadora de Jirau até que ela cumpra as obrigações”, diz.
Segundo José Leme Galvão, responsável no Iphan pelo tombamento parcial da EFMM em 2005, o problema vai ainda mais longe. Parte da lâmina d’água e das obras vai destruir trilhos, algumas construções antigas e um pequeno trecho perto de Porto Velho. “As hidrelétricas estão empurrando as medidas com a barriga. Ficou evidente que não se sentem compromissadas com o patrimônio. Elas entregaram, por exemplo, um projeto pobre que nós avaliamos e achamos melhor não construir. É um centro de triagem que abrigaria bens afetados direta ou indiretamente pelas obras, como restos de locomotivas e documentos. Na cidade, muitas pessoas recolheram coisas e poderiam devolver para serem abrigadas nesse local. Mas as usinas estão enrolando para não terem que fazer”, afirma Galvão. Até o fechamento desta edição, as empresas responsáveis pelas usinas – Santo Antônio Energia e Energia Sustentável do Brasil – não se manifestaram sobre o assunto.
Um dos problemas mais recentes foi o enchimento do reservatório da Hidrelétrica de Santo Antônio, maior que o previsto. A água acabou alcançando uma ponte que fazia parte da ferrovia, no distrito de Jaci Paraná. E o pior de tudo: com a conivência do governo estadual. “Os deputados de Rondônia criaram uma lei, em 2007, que desprotegia alguns trechos da estrada que seriam cobertos de água pelas hidrelétricas. Isso foi feito por debaixo dos panos. Só ficamos sabendo em março deste ano”, denuncia Beto Bertagna. Segundo ele, todo o trecho da EFMM era tombado pelo estado antes dessa lei.
Já a proteção do Iphan foi criada em 2005 e se restringe ao pátio ferroviário no centro de Porto Velho, a estrada de ferro até Santo Antônio, o cemitério de Candelária, onde eram enterrados os operários, e três caixas d’água do período da construção da estrada de ferro. De acordo com a chefe da divisão técnica do Iphan em Rondônia, Mônica Castro de Oliveira, foi só depois do tombamento que a área começou a receber a atenção devida. “As construções metálicas estavam enferrujadas, volta e meia aconteciam ações de vandalismo, trilhos e equipamentos de bronze foram vendidos, apareceram bares desordenados no pátio ferroviário, e até lápides do cemitério foram furtadas. Agora, principalmente, acho que as ações de recuperação estão acontecendo mais rapidamente como medidas compensatórias do que aconteceriam se nós tivéssemos que ir atrás de investimentos. Nossa ideia é aproveitar para ampliar a área de tombamento” diz ela.
Entre as medidas compensatórias, uma das mais interessantes e difíceis de serem realizadas é a reativação do passeio turístico de trem, criado nos anos 1980, do Centro de Porto Velho a Santo Antônio. O trajeto de sete quilômetros, que também será financiado pelas usinas, terá uma parada no meio do caminho, onde há diversas sucatas de locomotivas, o Hospital da Candelária e o cemitério de mesmo nome, criados para tratar e enterrar os trabalhadores da ferrovia nos primeiros anos do século XX. Segundo Geraldo Godoy, consultor da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária (ABPF), o passeio turístico pode aproveitar três locomotivas, mas os carros de passageiros e demais equipamentos deverão ser construídos do zero. “Em 2007, a ABPF foi contratada pelo Ministério dos Transportes para avaliar a recuperação do trecho e para estimar o custo da remoção das construções irregulares que existiam ao longo de 2,5 quilômetros da ferrovia. Infelizmente, não foram tomadas as medidas necessárias, e hoje a ocupação irregular já se estende por mais de quatro quilômetros. Já existem estabelecimentos comerciais, igrejas e até chácaras. O projeto depende da desocupação do espaço invadido, mas não se toca neste assunto em ano eleitoral. A desocupação será, sem dúvida, um processo longo e difícil”, afirma.
Outras medidas compensatórias estão mais adiantadas, como a urbanização da Igreja de Santo Antônio, que fica em frente ao ponto final do futuro passeio de trem, a recuperação de um galpão no distrito de Abumã e a restauração da estação ferroviária de Guajará-Mirim, ponto final da antiga ferrovia. No Centro de Porto Velho já foram recuperados a estação ferroviária e dois galpões – um deles aberto aos domingos para exposição das peças que farão parte do Museu Ferroviário. “O museu e o centro de memória dos trabalhadores vitimados na construção da estrada de ferro ficarão no Galpão Rotunda, que está sendo restaurado. O museu já existia, foi criado em 1981 pelo governo de Rondônia e passou para a responsabilidade da prefeitura em 2005, a fim de que fosse revitalizado”, explica Berenice Simão, vice-presidente da Fundação Cultural Iaripuna, da prefeitura de Porto Velho.
A responsável pela organização do museu nos anos 1980 foi a historiadora Yedda Pinheiro Borzacov, hoje presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia. Para montar o acervo, ela foi de casa em casa, buscando documentos e peças da ferrovia. “As pessoas tinham visto que estava tudo sendo abandonado e guardaram as peças por amor. Nossa maior dificuldade foi conseguir a primeira locomotiva da EFMM, chamada ‘Coronel Church’ em homenagem ao americano que fez as duas primeiras tentativas de construção da ferrovia, ainda no século XIX. Ela pertencia ao 5o Batalhão de Engenharia e Construção do Exército. Desde o ano anterior estávamos pedindo que nos passassem a máquina, mas eles não queriam. Foi uma luta tremenda. Só nos deram a locomotiva dois dias antes de inaugurarmos o museu”, lembra Yedda.
Ainda hoje, o 5o Batalhão de Engenharia e Construção (5º BEC) é responsável pelo acervo imobiliário da EFMM, segundo a Secretaria do Patrimônio da União em Rondônia. No entanto, nenhum funcionário do batalhão parece saber de qualquer relação com a ferrovia. Quem conhece bem essa relação é José Leme Galvão, responsável pelo tombamento da EFMM. Ele acompanha a história da ferrovia desde 1980, quando começaram os estudos de recuperação. “A Madeira-Mamoré foi decretada antieconômica em 1972, depois de 60 anos de funcionamento. Isso porque em 1912, quando foi inaugurada, o mercado da borracha entrou em declínio, e ela foi perdendo sua função principal. Nos anos 1970, o governo federal decidiu fechá-la e construir uma rodovia, mas ela só parou de funcionar por volta de 1975, porque os funcionários se recusavam a abandoná-la. Como vivíamos uma ditadura, não teve jeito. Os soldados do 5o BEC receberam ordens para parar a ferrovia. Eles arrastaram as máquinas e chegaram até a jogá-las no rio”, afirma.
A falta de cuidado com os equipamentos não era exclusiva do batalhão. Em 1979, a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) chegou a organizar a venda de locomotivas a vapor, carros de passageiros e trilhos como sucata. O material acabou não sendo vendido, mas, sem qualquer órgão para protegê-lo, foi danificado pelo tempo e depredado pela própria população. Segundo Yedda Pinheiro Borzacov, a situação hoje não é muito diferente. “Estamos acomodados. Achei que o centenário ajudaria a chamar atenção para o que resta do patrimônio, mas as redes de televisão só vieram falar de lendas da região e das comemorações. A principal homenagem à EFMM seria pôr os documentos à disposição do público, e não ver boi-bumbá dançando. Não tenho nada contra o boi, mas a preservação do acervo é mais importante”, desabafa Yedda. Ela diz que só restam duas estações de trem, a de Porto Velho e a de Guajará-Mirim, sua cidade natal. “Todas as outras estão destruídas. E agora as hidrelétricas estão cobrindo de água o que restou. Já destruíram um marco de divisa entre o Amazonas e o Mato Grosso, criado em 1911 porque os dois estados viviam disputando o terreno. Estão dizendo que vão reconstruir, mas não é a mesma coisa”, denuncia.
A omissão em relação ao drama da EFMM também preocupa Francisco Foot Hardman, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp e autor de Trem-fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva (Cia. das Letras, 2005). “Saiu muito pouca coisa na imprensa desde a época da construção. O que saía às vezes eram notícias mais oficiais, sobre o empreendimento. A Amazônia, de modo geral, ficou por muito tempo relegada a um relativo esquecimento. A historiografia hoje tem pesquisas importantes na Amazônia, mas ainda assim há poucas coisas sobre a Madeira-Mamoré. Acho que no imaginário nacional essas questões são ainda distantes, meio exóticas. Há exceções, mas vejo que os alunos de História, em geral, têm uma visão distante sobre o tema”, diz Hardman.
Um dos poucos responsáveis por divulgar a situação da EFMM, apelidada de “Ferrovia do Diabo”, foi o sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917), contratado em 1910 para controlar o avanço das epidemias de malária e de outras doenças tropicais, que só nos últimos cinco anos de construção mataram cerca de 1.600 pessoas. Há quem acredite que boa parte das mortes sequer entrou nas estatísticas oficiais. Cruz redigiu um relatório no qual descreve as péssimas condições dos trabalhadores, que chegavam em levas mensais de 300 a 350 pessoas, de diversos cantões do mundo. Ele afirmou sobre o então povoado de Santo Antônio, a sete quilômetros de Porto Velho: “A população infantil não existe, e as poucas crianças que se veem têm vida por tempo muito curto. Não se conhecem entre os habitantes de Santo Antônio pessoas nascidas no local: essas morrem todas. Sem o mínimo exagero, pode-se afirmar que toda a população de Santo Antônio está infectada pelo impaludismo”.
A malária, também conhecida como impaludismo, atrasou ainda mais as obras da ferrovia, só finalizadas na terceira tentativa, de 1907 a 1912. Segundo Júlio CesarSchweickardt, pesquisador do Instituto Leônidas e Maria Deane, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), depois que os operários contraíam a doença, a produtividade caía a um terço, e eles não se curavam totalmente. “Era praticamente impossível eliminar a malária, porque havia muitos focos de criação de mosquitos e os trabalhadores resistiam ao tratamento com quinina, já que a droga poderia provocar efeitos colaterais como surdez e cegueira. Oswaldo Cruz foi chamado para tentar controlar a situação, mas também para neutralizar as críticas contra a ferrovia, já que ele era a principal autoridade em matéria sanitária na época”, afirma Schweickardt.
Mesmo com o relatório de Oswaldo Cruz e algumas publicações como A ferrovia do diabo (Melhoramentos, 1981), primeiro livro sobre o tema, escrito por Manoel Rodrigues Ferreira, todas as tentativas fracassadas de construção da EFMM, suas vítimas e as décadas de abandono do patrimônio continuam esquecidos por boa parte da população. A situação só piora com a dificuldade permanente de se definirem os responsáveis pela ferrovia e seu acervo. Agora, em pleno ano do centenário, a estrada construída a ferro e sangue só escapará de ficar com parte de sua história debaixo d’água se as iniciativas tantas vezes anunciadas se tornarem realidade.
Saiba Mais - Bibliografia
BORZACOV, Yedda. A Estrada de Ferro Madeira Mamoré – Uma História em Fotografias.Porto Velho: Instituto Histórico e Geográfico de Rondônia/Grafiel, 2004.
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A ferrovia do diabo: História de uma estrada de ferro na Amazônia. São Paulo: Melhoramentos, 1981.
HARDMAN, Francisco Foot. Trem-fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SOUZA, Márcio. Mad Maria. Rio de Janeiro: Record, 2002.
A ferro e sangue
Cristina Romanelli