A foto que não estava lá

Carolina Sá-Carvalho

  • “Curiosidade! Assombro!! Horror!!! Miséria!!!!". Assim o jornal carioca Gazeta de Notícias anunciou, em 1898, a primeira exibição de 25 imagens “em tamanho natural” da Guerra de Canudos, obtidas pelo fotógrafo Flavio de Barros. O destaque daquela “projeção elétrica” seria o “fiel retrato do fanático Conselheiro”, cujas feições eram motivo de grande curiosidade e especulação. A foto mostra o cadáver estendido sobre a terra onde foi exumado a mando do general Artur Oscar. Fazia apenas quatro meses que terminara a aventura do líder messiânico. A quarta e última expedição militar deixara o arraial em ruínas e causara a morte de quase todos os seus habitantes. 
     
    Antes de tornar-se apenas memória, o povoado de Canudos e seu líder já eram retratados em crônicas e relatos que chegavam à capital. Frequentemente, os escritos se referiam a um passado pré-moderno, bárbaro, que surgia em pleno coração sertanejo. Aquilo seria como o retorno de algo que deveria estar morto, mas brotava das entranhas do Brasil. Esse encontro entre presente, passado e o espaço sertanejo encontrou sua mais célebre descrição nas palavras de Euclides da Cunha, em Os Sertões: o povoado “surgia (...) já feito ruínas”, como uma “sociedade morta”, construída num trecho que recordava “uma vala comum enorme”. A moderna técnica fotográfica, auxiliada por um também moderno projetor elétrico, reforçaria este imaginário: Canudos voltaria como fantasma a assombrar a modernidade brasileira.
     
    O livro de Euclides era uma obra moderna, recheada de referências às teorias positivistas e evolucionistas em voga na época. E até onde se sabe foi nele que se viram impressas, pela primeira vez, as fotografias de Flavio de Barros. Publicado em 1902, Os Sertões oferece uma reflexão sobre as contradições da modernidade brasileira, cujas deficiências teriam ficado claras no caso de Canudos. Enquanto a projeção elétrica das fotos era um espetáculo fugaz de cenas e personagens já extintos, a publicação das mesmas imagens nas páginas do livro tinha efeito oposto: integrava um documento destinado, nas palavras do autor, ao “olhar de futuros historiadores”.
     
    São três as imagens impressas na primeira edição de Os Sertões. O fotógrafo as nomeara como Divisão Canet, 7° Batalhão de Infantaria nas trincheiras e 400 jagunços prisioneiros, mas Euclides da Cunha deu-lhes novos títulos: Monte Santo (Base das operações), Acampamento dentro de Canudos e As prisioneiras. Edições posteriores do livro nem sempre as reproduziram, mostrando não considerar as fotografias como parte integrante daquela produção literária. No caso das obras completas do escritor, publicadas pela Editora Nova Aguilar, a ausência das imagens no texto de Os Sertões é compensada pela inclusão de uma seção intitulada Iconografia de Canudos. A seção contém não três, mas 12 fotografias de Flavio de Barros. Ambos os gestos parecem reforçar a crença de que as fotos funcionam como apêndice ilustrativo do texto, que podem ou não contribuir para a compreensão do evento narrado.
     
    Alguns autores argumentam que a presença dessas imagens indica uma relação estrutural entre a prosa de Euclides da Cunha e a linguagem fotográfica, sugerindo – como afirma Berthold Zilly, tradutor de Os Sertões para o alemão – que o seu olhar era “aguçado e direcionado por esse modo de ver” e que “parece ter escrito algumas cenas lembrando e interpretando fotos de Flavio de Barros”. 
     
    Talvez a evidência mais reveladora desta relação, e menos estudada, seja a descrição da fotografia do cadáver de Antônio Conselheiro presente nas últimas páginas de Os Sertões. A imagem enfatizada pelo anúncio publicitário de 1898 pode ser considerada a quarta foto do livro, e a única que estará para sempre nele contida. Mesmo ausente, ela ocupa um papel importante na narrativa, ao ser descrita por Euclides da Cunha como o gesto final do exército republicano. Mas por que o mais célebre e cobiçado registro fotográfico de Canudos não foi publicado?
     
    A referência à imagem aparece na última parte do penúltimo capítulo, intitulado “O cadáver do Conselheiro”, como se fosse uma legenda para a foto não exibida. No capítulo anterior, chamado “Canudos não se rendeu”, Euclides da Cunha anuncia o fim do livro, reconhecendo a impossibilidade de narrar, “com apenas a fragilidade da palavra humana”, os horrores dos últimos momentos da guerra. E é então que, esgotada a crença na palavra, vem a famosa fotografia. 
     
    Mais do que a superfície da imagem não mostrada, o que ele descreve é o momento do ato fotográfico. Euclides conta como o cadáver de Conselheiro foi encontrado e cuidadosamente desenterrado, revelando seu “rosto tumefato e esquálido, olhos fundos cheios de terra”. E como os soldados fizeram o máximo de esforço para não desarticular o corpo, a ponto de torná-lo irreconhecível, pois ele era “dádiva preciosa”, única “relíquia” da guerra. A fim de transformar o profeta definitivamente em passado, chamaram Flavio de Barros para que o fotografasse e “firmou-se ata rigorosa firmando sua identidade”.
     
    O filósofo Walter Benjamin sugeriu que a fotografia, como um souvenir, é o cadáver de uma experiência, o traço deixado por aquilo que passou para a história. Se a primeira exibição pública das fotos de Flavio de Barros prometia o retorno dos fantasmas de Canudos, Euclides da Cunha terminou seu livro monumental com uma imagem-cadáver, um souvenir de guerra arrancado das entranhas da terra sertaneja. No primeiro caso, aparição espectral, projetada em tamanho real, que pretendia assombrar e saciar a curiosidade. No segundo, a imagem não mostrada, o momento de sua tomada narrado em uma linguagem que, desde o início do livro, tenta traduzir em palavras a relação entre o terreno árido do sertão e as feições, os corpos e o comportamento dos sertanejos. A terra inóspita foi longamente descrita por Euclides da Cunha como único berço possível para Antônio Conselheiro, o personagem bárbaro e fanático criado pelo autor sob a influência das teorias raciais. 
     
    Por um lado, a cena final da exumação, na qual o corpo do Conselheiro é arrancado das entranhas do solo sertanejo, pode ser lida como uma paráfrase de todo o livro. Na obra não faltam imagens de Antônio Conselheiro brotando da terra, árida, que só pode parir algo já morto, sua própria ruína. Por outro lado, o rosto do indivíduo e a fotografia que o identifica, e o incrimina, devem permanecer invisíveis.
     
    E não acaba ali. Segundo Euclides da Cunha, depois de desenterrar, fotografar e novamente sepultar o corpo de Conselheiro, os soldados resolveram exumá-lo novamente. Cortaram-lhe a cabeça, que foi transportada para o litoral, onde delirava uma multidão em festa. O crânio seria levado para a Faculdade de Medicina da Bahia, para que a ciência – baseada nas teorias de Maudsley e Lombroso – pudesse ler nele sinais de anomalia, degenerescência e loucura. Só então se chega à verdadeira última parte do livro, o capítulo VII, composto de apenas uma linha, imagem final depois de quase 500 páginas: “... é que ainda não há um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”. 
     
    A cabeça de Antônio Conselheiro, além de souvenir de guerra, é usada como objeto de estudo, observação e condenação, mas acaba por refletir o olhar que recai sobre ela. No corpo degolado e nos olhos cheios de terra, Euclides da Cunha aponta a barbárie cometida pelo exército republicano, evocando todas as outras degolas e assassinatos.  
     
    Ao não mostrar a imagem de Flavio de Barros, o escritor dirige a atenção do leitor – ávido por ver os traços do Conselheiro – para a própria República, a nação moderna, que se revela criminosa. É para nós mesmos que devemos olhar. A imagem oculta, revelada apenas pelo gesto que lhe deu vida – por meio da técnica fotográfica, na recém-proclamada ordem republicana e sob as mais recentes teorias científicas – deixa de ser apenas a imagem do Conselheiro. Passa a ser a imagem do país.
     
    Carolina Sá-Carvalho é autora da dissertação “O sofrimento em imagens: uma história entre a fotografia e a política” (UFRJ, 2008)
     
    Saiba Mais:
     
    ALMEIDA, Cícero Antônio F. de. Canudos imagens da guerra. Rio de Janeiro: Lacerda, 1997.
    CUNHA, Euclides da. Obras completas. Vols. 1 e 2. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1995.
    Cadernos de fotografia brasileira: Canudos. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2002.