Os jornais não deram bola. Mas, em 26 de junho, a Biblioteca Nacional perdeu uma peça-chave de seu acervo. Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha morreu aos 87 anos, sem a menor intenção de pendurar as chuteiras. Bibliotecária que não se limitou à sua área de formação, Dona Lygia, como era conhecida, foi uma das funcionárias que mais jogaram luz sobre o acervo da instituição. Palavra de amigos, colegas e até de desconhecidos.
Se a imprensa não lhe rendeu as devidas homenagens, a deferência veio de outros cantos. Antes de fraturar o fêmur e ter seu quadro clínico agravado, pelo menos três tributos à sua vida e sua obra já estavam a caminho. Um deles sai das portas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), cuja biblioteca Dona Lygia dirigia.
“É uma homenagem justa”, garante Maria de Lourdes Viana Lyra, sócia honorária do IHGB e professora aposentada da UFRJ. Amiga da ex-funcionária da BN, Maria de Lourdes se juntou à historiadora Renata Santos, também da UFRJ, para reunir em três volumes a produção deixada por Lygia. E não é coisa pouca. Comparada ao historiador Gilberto Ferrez (1908-2000), um dos principais estudiosos da iconografia brasileira, a bibliotecária escreveu dezenas de textos, resenhas e livros também sobre o assunto.Renata conheceu Lygia pelos estudos. “Trabalhei com gravuras no meu doutorado e a conheci por meio de seus livros”, conta. “Ela fez um importante trabalho de reunir, identificar, esmiuçar o acervo”. Maria de Lourdes faz coro: “As obras da Lygia são fundamentais para a área de iconografia. Quem estuda esse campo acaba se deparando com o trabalho dela”.
O namoro de Dona Lygia com a Biblioteca Nacional começou cedo. Na década de 1940, ela já transitava por ali com a postura sisuda e seu tailleur engomado. A obsessão por tornar o acervo mais palatável lhe rendeu mais de 20 anos à frente da Divisão de Iconografia e outras duas décadas chefiando a Divisão de Referência Especializada, que inclui os setores de Obras Raras, Iconografia, Manuscritos e Música.
Aposentou-se, saiu e voltou como convidada, para integrar comissões internas. “Isso aqui era a vida dela. Ela faz parte do cenário da BN”, diz Ana Virgínia Pinheiro, que hoje coordena a Divisão de Obras Raras. A atuação de Lygia ultrapassava as portas da Biblioteca. E sempre que saía para dar palestras, publicar textos em jornais, ministrar cursos ou organizar exposições, levava junto o nome da BN.
Sua veia de pesquisadora deixou informações detalhadas sobre as coleções da instituição. “Ela mastigou os dados, ajudou a divulgá-los de forma organizada”, explica Mônica Carneiro Alves, funcionária da Iconografia. “Além disso, quando era chefe da seção, adquiriu muitas obras, enriquecendo bastante o acervo”.
O nome de Dona Lygia já ecoou por muitos cantos do conhecimento. Chegou, por exemplo, à Academia Brasileira de Letras. Chefe da Biblioteca da ABL, Luiz Antonio de Souza nunca trocou uma palavra com a bibliotecária, mas prepara um texto sobre o legado que ela deixou. “Ela é um marco, pois garantiu às gerações futuras o acesso à documentação”.
A BN também guarda sua homenagem. Produzido por Valéria Gauz, ex-chefe de Obras Raras, e pelo fotógrafo Joaquim Marçal, um livro vai contar como a trajetória de Dona Lygia rompeu os limites da Biblioteconomia. “Ela extrapolou. Foi, na verdade, uma grande historiadora da arte”, define Maria de Lourdes. “Seu nome era sinônimo de Biblioteca Nacional”.
A guardiã do acervo
Bernardo Camara