A hora do Brasil

Revista de História

  • Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a cidade de Milão foi duramente bombardeada pelos aliados. Entre os inúmeros prédios atingidos, estava o arquivo da Editora Ricordi, detentora dos direitos das mais importantes partituras da música clássica produzida até então. Muitas foram destruídas e, no meio delas, provavelmente a original de O Guarani, ópera de Carlos Gomes (1836-1896), que estreou no Teatro Alla Scala de Milão, templo do teatro lírico europeu, em março de 1870. Livremente baseada no romance homônimo de José de Alencar – que pretendia proclamar nossa independência estética com essa obra sobre as origens brasileiras –, a ópera do compositor paulista inseriu o Brasil no mapa musical do mundo, tornando-se a primeira obra musical brasileira com repercussão internacional.

    Devido ao seu grande sucesso, ainda no século XIX, a obra foi montada em vários lugares da Europa e também no Brasil, o que gerou inúmeras partituras copiadas por profissionais especializados – um trabalho que produz freqüentemente alterações, involuntárias ou intencionais, na composição original. Por essa razão, as partituras revisadas por Carlos Gomes, que integram o acervo da Biblioteca Nacional, tornam-se fundamentais para o conhecimento dessa criação do compositor.

    O documento é composto por quatro volumes encadernados em couro marrom, cada um medindo 34 x 25cm, com 714 fólios numerados, totalizando aproximadamente 1.430 páginas realizadas por seis diferentes copistas – além de apresentar peças de próprio punho do maestro. O conjunto foi autorizado pelo compositor no frontispício do primeiro ato: “Em qualquer eventualidade, esta cópia mista pode servir como autógrafo, uma vez que foi revisada pelo autor, A. Carlos Gomes” (em italiano), tornando-se o documento mais autoral preservado da ópera.

  • Seu conteúdo é formado por diferentes versões para execução, cópias de diferentes datas e intervenções textuais – inclusive por indicações para os copistas que iriam reproduzir o manuscrito. É possível identificar partes da fase original da composição, assim como as modificações anteriores à estréia no Alla Scalla em 1870, e aquelas que foram feitas para a reapresentação da ópera em 1871, durante a Exposição Internacional de Milão, quando foi incluída a Sinfonia.

    Uma grande questão envolve a colocação da Sinfonia no corpo da ópera, freqüentemente executada em seguida ao Prelúdio. O maestro Sílvio Barbato – após análise da partitura preservada na Biblioteca Nacional e sua comparação com outros documentos ligados a Carlos Gomes – propõe sua transposição para o trecho entre o 3o e o 4o atos. Trata-se de um exemplo de como o estudo desse documento pode ajudar os intérpretes, em montagens ou gravações, a preservar a própria memória musical brasileira.