Em vida, ela foi chamada de “a mãe dos brasileiros”. Quase um século depois de sua morte, em 1998, ela foi homenageada com uma exposição no Museu Imperial de Petrópolis, e então tratada como “a imperatriz silenciosa”. Que segredo repousaria sob essa trajetória – de símbolo materno nacional a vulto enigmático – e que envolveria a figura de D.Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II (1825-1891), a terceira imperatriz do Brasil?
Nascida em Nápoles em 14 de março de 1822, no berço da família Bourbon, Teresa Cristina chegou ao Brasil em 1843, com 21 anos. O casamento com D. Pedro II ocorrera por procuração, em 30 de maio daquele ano, na Real Capela Palatina, em Nápoles. A imperatriz teria causado uma grande decepção ao marido, quando este a viu em carne e osso pela primeira vez. D. Pedro II, quatro anos mais novo do que a noiva, só a conhecia por retrato e não escondeu a frustração causada pela discrepância entre a paleta do artista e a realidade dos fatos: sua princesa era baixa, acima do peso e manca. Mas, se não era bela, ela provaria ter outros atributos.
Desde cedo, Teresa Cristina se interessou por arqueologia, paixão suscitada pelas escavações nas cidades de Herculano e Pompéia, próximas de Nápoles, iniciadas por seus antepassados em meados do século XVIII. Em sua bagagem, trouxe várias peças, entre as quais 13 ânforas de bronze com alças em arco. Esses objetos, a maioria proveniente da região da Campânia, na península itálica, seriam o núcleo da coleção que posteriormente receberia seu nome e que hoje se encontra em exposição no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.
Em pouco tempo, outros achados importantes se juntaram àqueles trazidos pela imperatriz. Teresa Cristina patrocinou à distância trabalhos de escavação perto de Roma. Por meio de cartas, a imperatriz estabelece, a partir de 1856, com seu irmão Fernando II (1810-1859), um intercâmbio de peças de artesanato indígena por antiguidades pertencentes ao Real Museu Bourbônico, em Nápoles. Entre os achados enviados por Fernando II destacam-se dois afrescos, verdadeiras preciosidades, que mostram figuras marinhas pintadas sobre fundo escuro, provenientes do templo de Ísis, em Pompéia. Graças ao interesse da imperatriz, o Brasil conta com uma coleção de arqueologia clássica de aproximadamente 700 peças, a maior do gênero na América Latina.
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O mais surpreendente é que a paixão da imperatriz por arqueologia – incomum para os padrões de comportamento feminino vigentes na sociedade implacavelmente patriarcal do Segundo Reinado – aparentemente passou despercebida, não só aos olhos dos historiadores, mas também à pena de seus escassos biógrafos. Em 2005, a exposição “Afrescos de Pompéia: beleza revelada”, realizada no Museu Nacional de Belas Artes, revelou ao público um lado da vida de Teresa Cristina ainda pouco conhecido. Até então, ela fora descrita unicamente como esposa e mãe exemplar.
Mãe de quatro filhos – Afonso, Isabel, Leopoldina e Pedro Afonso, nascidos em 1845,1846,1847 e 1848, respectivamente, a esposa de D. Pedro II foi vítima indireta da chamada maldição dos Bragança. Reza a lenda que um franciscano, depois de pedir esmola ao rei D.João IV (1604 -1656) e de receber como resposta um pontapé, rogou uma praga segundo a qual nunca um primogênito naquela família iria sentar-se no trono.
De fato, Afonso, primeiro filho de Teresa Cristina e Pedro II, morreu em 1847, dois anos após seu nascimento. No ano seguinte, o casal imperial receberia outro golpe com a morte de seu segundo filho, Pedro Afonso, com apenas alguns meses de vida. Leopoldina também morreu cedo, em 1871, com 24 anos, vítima de tifo, em Viena. O destino pouparia apenas Isabel – tratada carinhosamente pela mãe como Isabella e pela história como a “Redentora”.
Curiosamente, em seu diário – escrito entre 1854 e 1887 – Teresa Cristina não faz qualquer menção ao seu amor pelos achados da Antiguidade. O que há é o relato de uma mãe de família: doenças das filhas, visitas feitas e recebidas, comentários sobre o tempo, notícias dos parentes deixados na Europa, casamentos das princesas, vinda dos netos e mal-estares do imperador. Ao lado das poucas referências a questões políticas da época, há uma listagem minuciosa de óperas, balés e peças de teatro a que ela assistiu, no Brasil e no exterior.
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Fora das páginas de seu diário, Teresa Cristina também expressou sua queda pelas artes, especialmente pelo canto. Traço comum entre os napolitanos, a voz bonita e educada da imperatriz seria mencionada por um diplomata francês, citado por Afonso de Taunay no livro No Brasil de 1840: “Em fevereiro de 1844, um diplomata em trânsito, Jules Itier, visitando a Quinta da Boa Vista, parou, espantado, junto às janelas do Paço. ‘Era uma voz feminina, admiravelmente bem timbrada, que emitia as notas da famosa ária rossiniana Una voce poco fá’. Um bom piano acompanhava a cantora. Quis aplaudir e conteve-se. Porque surgiu, no balcão, a própria imperatriz”.
Mas não foi apenas em sua coleção arqueológica e na música que Teresa Cristina demonstrou seu bom gosto. Ela deixou evidências de seu apurado senso estético ao criar a decoração do Jardim das Princesas no museu de São Cristóvão. Colando sobre o cimento fresco conchas e restos de louça inglesa, com uma técnica conhecida como embrechamento, recobriu bancos, tronos e trechos de muros, em requintadas combinações de cores e formas, compondo rosáceas, guirlandas, colunas e barrados. Sem nenhum fundamento, a autoria dos sofisticados adornos do Jardim das Princesas foi atribuída à princesa Isabel¬ – que tinha apenas seis anos na época – e a suas aias. O que sobrou dessa ornamentação – muito danificada atualmente e precisando de restauro urgente – é suficiente para dar uma idéia do encanto que teve no passado. Nos dias quentes, a imperatriz e suas filhas costumavam passar o tempo ali.
Tanto por seus interesses arqueológicos e musicais como pela criatividade intuitiva da arte manifestada nesse gesto materno de decorar o Jardim das Princesas, Teresa Cristina se distanciaria da figura de espírito opaco, como é normalmente retratada nos livros de História. Talvez a timidez e o temperamento reservado da imperatriz dessem a falsa impressão de que não era afeita à atividade intelectual. Além disso, talvez tivesse um daqueles temperamentos “ligeiramente melancólicos” (segundo o jargão médico da época), até mesmo por motivos físicos: as fortes dores que sentia na perna. O problema de saúde da imperatriz levou o casal imperial a buscar tratamento na Europa, em 1876, com diferentes médicos, entre eles o francês Jean-Martin Charcot, considerado o fundador da neurologia moderna. Ainda há uma terceira hipótese: pode ser que todo o empenho dedicado à construção da imagem pública de D. Pedro II tenha roubado a luz de Teresa Cristina, lançando-a na categoria de cônjuge invisível.
Há indícios de algum preconceito. Heitor Lyra, em sua história sobre o reinado de D. Pedro II, escreve que Teresa Cristina provinha “do ramo suspeito” dos Bourbon. A observação não faria jus às origens da imperatriz, descendente de uma linhagem capaz de brilhar em qualquer corte européia. Seu pai era Francisco I (1777-1830), filho de Fernando I (1751-1814) e de Maria Carolina de Nápoles (1752-1814). Carlos III da Espanha, conquistador definitivo do reino de Nápoles para a casa dos Bourbon, era seu bisavô. Sua tia, Carlota Joaquina (1775-1830), era avó de Pedro II. Por causa deste parentesco, o papa Gregório VI teria que assinar uma dispensa de impedimentos, lida durante a celebração do casamento.
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Quanto à sua terra de origem, o Reino das Duas Sicílias, cabe lembrar que era o mais extenso da península italiana. Sua capital, Nápoles, adquiriu grande importância cultural e artística no século XVIII. Ponto de encontro obrigatório no chamado grand tour (viagem de meses empreendida pela Europa, às vezes incluindo a Grécia, a Turquia e até o Egito, com o objetivo de alargar os horizontes dos bem-nascidos por meio do contato com outras culturas), Nápoles se tornou – ao lado de Londres e Paris – uma das cidades européias de maior projeção. Lá chegavam todos aqueles que almejavam uma formação intelectual e mundana, seguindo o exemplo de Goethe (que seria o autor da frase “Depois de ter visto Nápoles, você já pode morrer”) e, no século XIX, de Alexandre Dumas (pai), Rossini, Lamartine, Chateaubriand, Stendhal e Gerard de Nérval, entre muitos outros.
Em 1861, Vitor Emanuel II (1820 -1878) assumiu o título de rei da Itália, e os Bourbon, que já haviam sido afastados do trono pela invasão de Garibaldi, perderam oficialmente o domínio sobre o Reino das Duas Sicílias. Teresa Cristina lamentou veladamente o fato, escrevendo em seu diário, dez anos depois, durante seu primeiro retorno a Nápoles, acompanhada do imperador: “Não sei dizer a impressão que eu tive em ver de novo, após 28 anos, a minha pátria e não encontrar mais as pessoas de quem gostava” . Isto poderia ser interpretado como prenúncio do sofrimento maior que se abateria sobre ela: com a proclamação da República, Teresa Cristina também perderia sua coroa de imperatriz. Em 17 de novembro de 1889, a família imperial foi banida do solo brasileiro, embarcando rumo à Europa.
D. Teresa Cristina viria a falecer 41 dias depois, de ataque cardíaco, em um quarto do Grande Hotel (modesto, apesar do nome), na cidade do Porto, na companhia apenas da baronesa da Japurá, Maria Isabel de Andrade Lisboa. A esta, antes do último suspiro, a ex-imperatriz teria dito: “Maria Isabel, não morro de moléstia, morro de dor e de desgosto”. Nesse momento, D. Pedro II visitava a Academia de Belas Artes da cidade.
Comparado com o que já se escreveu sobre nossas duas outras imperatrizes – Leopoldina e Maria Amélia, esposas de D. Pedro I –, muito pouco se falou sobre Teresa Cristina, embora ela tivesse vivido por quase meio século em terras brasileiras. A lembrança dessa princesa napolitana, de gosto artístico refinado e um meio sorriso “à la Mona Lisa”, merece ser alçada de novo à luz, como aconteceu com os tesouros de Pompéia.
Eugenia Zerbini é escritora e autora de As netas da Ema (Editora Record), romance vencedor do Prêmio Sesc Literatura 2004; escreve atualmente uma biografia romanceada da imperatriz Teresa Cristina.
A imperatriz invisível
Eugenia Zerbini