A Índia é aqui

Luís Frederico Antunes

  • Início do século XXI. O Oriente está em alta no Brasil e no mundo. A grande vencedora do Oscar 2009 é a Índia, onde se passa “Quem quer ser um milionário?”, filme de Danny Boyle que conquistou nada menos que oito estatuetas em Hollywood. Por aqui, a curiosidade sobre costumes orientais ganha a cultura de massa na novela “O Clone” (2001) – que mostrava a vida de muçulmanos no Marrocos – e é reforçada por “Caminho das Índias”, da mesma Glória Perez. O resultado está nas ruas: lojas do país inteiro são invadidas por sapatilhas, sáris (tecidos coloridos enrolados ao corpo) e punjabis (conjuntos de calça e túnica).

    Início do século XIX. O Rio de Janeiro vive fenômeno parecido. Mas no andar de cima. Louças e sedas chinesas, tecidos de linho indianos e móveis lacados, que por tradição se encontram em palacetes nobres, multiplicam-se também nas mansões e moradias de negociantes cariocas. Possuir objetos asiáticos é uma forma de buscar reconhecimento social. Se não contam com títulos de nobreza ou fidalguia de nascimento, exibem ao menos sua influência na vida econômica.

    Elias Antonio (?-1815) é um deles. E com base em seu inventário, guardado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, pode-se imaginar momentos da rotina desse homem, um dos principais comerciantes da capital.

    É uma manhã úmida e ele se apronta para sair de casa, na Chácara de São Cristóvão (atual Quinta da Boa Vista). Veste um casaco, uma jaqueta de sarja de seda preta que não aperta na cintura e um calção de gorgorão de seda acolchoado, com relevos formando finos cordões, fabricado na Índia. A indumentária sobressai pela qualidade do acabamento das sedas chinesas, dos tafetás mais finos e dos linhos indianos mais ou menos transparentes. Na mão empunha, com altaneira dignidade, uma exótica bengala de abada, de chifre de rinoceronte indiano, com castão de ouro esmaltado. Só poucos negociantes de fino trato, como o comendador Caetano Pinto e o capitão Francisco da Cunha Pinheiro, podem exibir as  luxuosas bengalas de marfim e de bambu da Índia, com ponteiras de ouro e prata.

    Enquanto o comendador Elias Antonio Lopes se arruma, o “moçambique” Tibúrcio, um negro que veio do Índico para ser “lacaio de sege”, prepara a pequena carruagem de portas verdes que transportará seu patrão à sede do Banco do Brasil, na Rua Direita (atual Primeiro de Março), do qual Lopes é sócio. Junto ao coche aguarda um pajem de chapéu de couro envernizado e copa alta, fardado de calça e casaca de pano ordinário azul, que, por não ter os botões apertados, deixa entrever um colete de caxemira indiana feito de lã fina escarlate.

    Ainda dentro de casa, o senhor repara nas louças postas à vista. As antigas baixelas de prata e a porcelana da China – vulgarmente chamadas de “louça da Índia” pelo fato de serem transportadas nas naus daquele país – passaram a conviver com novos serviços de louça europeia chamados pó-de-pedra. Mas a verdade é que este tipo de louça apenas copiava os desenhos orientais e os padrões decorativos retirados de uma herança cultural milenar, tão em voga no mundo ocidental de fins do século XVIII. Foi a semelhança com a porcelana chinesa – até hoje identificada com a idéia de exotismo e luxo asiático – que alavancou o interesse pelas novas louças europeias.

    Boa parte do mobiliário de Elias Lopes, assim como os dos comerciantes Carneiro Leão e membros da família Gomes Barroso, era fabricada com a nobre madeira de jacarandá. Outros investiam mais em decoração asiática. Assim era a mansão do comerciante Francisco Xavier Pires, que contava com diversas mesas pequenas em forma de meia laranja, cômodas, bancas de cabeceira com embutidos de marfim do Índico, mesas de laca de Macau ou do Coromandel, situado na costa oriental da Índia, e alguns móveis portáteis, entre os quais um “contador” da China, usado para servir bebidas ou iguarias. Elias, por sua vez, tinha apenas uma “caixinha de charão” com três frascos, isto é, uma pequena caixa lacada, geralmente ornamentada com pinturas orientais.

    Algumas pinturas de Henry Chamberlain e Debret, como “Uma família brasileira” e “Visita a uma fazenda”, representam muito bem esse período curioso, em que os artigos orientais conviviam com o processo intenso de ocidentalização do Brasil. De um lado, o universo tradicional que ainda adotava heranças culturais vindas do Oriente. Do outro, um mundo em movimento, que tenderia a se aproximar das modas europeias após a chegada da Corte e a abertura dos portos brasileiros, em 1808. Antes que essa batalha cultural pendesse de vez para o lado do Ocidente, os legados asiáticos marcaram a sociedade brasileira, sobretudo no Rio de Janeiro.

    A carruagem que transporta Elias Antonio Lopes circula pelas ruas do centro da cidade. Ele observa escravos carregando seus senhores em serpentinas e palanquins, meios de transporte que dispensavam rodas. Também vê passarem mulheres escondidas atrás de véus – enquanto as que estão em casa se ocultam por meio de telas e cortinas –, à moda do purdah, uma prática inicialmente seguida por muçulmanos e depois adotada também por hindus, especialmente na Índia.

    Com a chegada da Corte, a presença de janelas com treliças – também chamadas de rótulas – ou muxarabiês de origem mourisca, quando não simples tábuas de madeira vedando os vãos, ficou envolta em polêmica. Embora variassem na forma e no funcionamento, esses mecanismos eram eficazes na proteção contra o excesso de luz e de calor. No entanto, seu aspecto muitas vezes grosseiro e mal-arranjado atrapalhava a passagem e enfeiava o visual das fachadas dos edifícios. Já em 1809 esses elementos de origem muçulmana começaram a ser subtituídos por janelas envidraçadas. Mas como não existiam fábricas de vidro no Brasil e importá-lo saía muito caro, as janelas mouras persistiriam por muitas décadas, em particular nas casas térreas das camadas sociais mais desfavorecidas. Para esse tipo de habitação, a polícia exigia apenas que a proteção das janelas passasse a abrir para o interior, de modo a facilitar o trânsito nas calçadas. Os transeuntes ganharam, por tabela, melhores condições de apreciar a beleza feminina pelas frestas. Afinal, pelo sistema de vedação mourisco “só se viam os olhos negros, os olhos compridos e espichados das mulheres”, como desabafou o reverendo R. Walsh.

    A partir de 1810, a Gazeta do Rio de Janeiro indica a existência de várias lojas, armazéns e até casas particulares especializadas na venda ou leilão de artigos asiáticos que chegam nos navios da Índia (do Malabar e de Bengala) e do Extremo Oriente (da China e de Macau). A sensação é o chá, que, junto com outras plantas exóticas orientais, foi introduzido no Real Horto (atual Jardim Botânico). A iniciativa foi de Luís de Abreu, capitão da fragata portuguesa Princesa do Brasil, naufragada em Goa em 1809. Os sobreviventes do naufrágio foram aprisionados pelos franceses e enviados para as Ilhas Maurícias, onde existia um jardim botânico. Tendo conseguido fugir para o Brasil, Luís de Abreu trouxe consigo sementes de abacateiros, moscadeiras, cajazeiras e da Palma Mater (da qual descendem todas as palmeiras imperiais do Brasil), que foram presenteadas a D. João e prontamente plantadas. Mais tarde, em 1812, foram enviadas sementes de chá, logo cultivadas por colonos chineses que chegaram ao Rio de Janeiro para ensinar a preparação do produto.

    Pode ser que no fim do dia Elias Antonio Lopes tenha provado uma xícara de chá na Rua do Ouvidor, devidamente servida em porcelana “da Índia”. Duzentos anos depois, os camelôs ocuparão aquela região do Centro alardeando seus produtos. Inclusive belas réplicas das roupas e dos acessórios que se vêem na oriental novela da TV.

    Luís Frederico Dias Antunes é pesquisador do Instituto de Investigação Científica Tropical, em Lisboa, e autor do artigo “Têxteis e metais preciosos: novos vínculos do comércio indo-brasileiro (1808-1820)”, no livro O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (séc. XVI-XIX).


    Saiba Mais - Bibliografia:

    BANDEIRA, Julio [et. al]. Castro Maya – Colecionador de Debret. Rio de Janeiro: Editora Capivara, 2003.

    FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento, fortunas e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Editora Nova Imprensa, 1998.

    FRAGOSO, José Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional e Civilização Brasileira, 1992, 1998.

    NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Vida privada e quotidiano no Brasil na época de D. Maria I e de D. João VI. Lisboa: Editorial Estampa, 2004.