A invenção do grito

Cecília Helena de Salles Oliveira

  • Até há pouco tempo, predominava a interpretação de que a pintura acadêmica do século XIX não passava de mera reprodução de padrões estéticos europeus. Além disso, carregaria as marcas do mecenato do governo e de um discurso conservador e laudatório, uma vez que era arte dependente de auxílios financeiros da Coroa e de encomendas oficiais. Atualmente, historiadores e estudiosos da arte e da política imperiais têm procurado compreender de modo diverso essas representações, reconhecendo que exprimem projetos estéticos complexos, com soluções inesperadas e criativas. É o caso da obra Independência ou morte, de Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905).

    Não restam dúvidas sobre o fato de que o artista era tributário dos princípios gerais que norteavam a “pintura da história” desde o século XVIII. A iconografia era então interpretada como recurso para encantar os olhos e emocionar as almas, mobilizando os sentimentos coletivos para as virtudes cívicas. Essa dimensão do registro visual não passou despercebida aos políticos do partido conservador de São Paulo e da Corte, que, na década de 1880, se empenharam em erguer na colina do Ipiranga, na capital paulista, um monumento que, simultaneamente, delimitasse o lugar da proclamação da Independência e reverberasse uma imagem renovada da monarquia, no momento em que pesadas críticas eram endereçadas às figuras e aos fundamentos do regime pela campanha republicana.

    Tendo em vista o caráter simbólico atribuído àquele espaço, para complementá-lo e dar acabamento à representação do Sete de Setembro ali inscrita, foi acrescentado ao projeto do prédio o painel Independência ou morte. Elaborado em Florença, na Itália, por Pedro Américo, entre 1886 e 1888, ele mede 7,5 por 4,11 metros, e foi idealizado para ocupar lugar de destaque no salão de honra do Monumento do Ipiranga. Desde a inauguração oficial da instituição, a 7 de setembro de 1895, a pintura pode ser admirada pelo público. Constitui a representação mais difundida da proclamação de 1822, a despeito de não ser a única, pois outros artistas, no século XIX, fixaram em gravuras e pinturas a cena do “grito”. Mas, do ponto de vista da repercussão e da identificação da imagem ao episódio, nada se compara ao trabalho de Pedro Américo.

  • Muito embora fosse um dos mais renomados artistas brasileiros, seu envolvimento com a celebração da Independência não se deu propriamente por meio de um convite. Foi o pintor que se ofereceu para fazer o painel, encorajado por políticos atuantes na Corte. O contrato foi firmado no início de 1886 e certamente demandou ajustes de ambas as partes, até porque a postura política do artista estava mais afinada com liberais e republicanos do que com os monarquistas. O folheto O brado do Ypiranga ou a Proclamação da Independência do Brasil, algumas palavras acerca do fato histórico e do quadro que o comemora, impresso originalmente em Florença, em 1888, descreve os caminhos percorridos na confecção da obra e evidencia entrelaçamentos entre arte e política. 

    De fácil e prazerosa leitura, o opúsculo se divide em dois segmentos: o fato e a pintura. Na parte inicial, Pedro Américo descreve o episódio do Sete de Setembro, e à primeira vista suas palavras parecem repisar o relato que o padre Belchior formulou como testemunha presencial, em 1826. No entanto, a versão recriada por Pedro Américo é singular em razão da pesquisa minuciosa que realizou sobre o tema, e sobretudo pelo modo como inseriu o episódio no campo da política. Consultou historiadores, retratos, objetos e descendentes de protagonistas. A isso reuniu observações pessoais elaboradas durante a visita ao “sítio do Ipiranga”, que conheceu, em 1886, quando as obras do monumento já haviam começado.

    A segunda parte do folheto é toda dedicada à descrição dos elementos que possibilitaram “revestir das aparências materiais do real todas as particularidades de um acontecimento que passou-se há mais de meio século”. Ponderava que um quadro histórico se alicerçava na “verdade”, embora o pintor não devesse dela se tornar escravo. Assim, entre outros aspectos, alterou a topografia, para realçar o riacho do Ipiranga e a colina; escolheu raças eqüinas que dessem maior elegância ao príncipe e à comitiva; definiu características de trajes e chapéus; e promoveu a incorporação anacrônica da guarda de honra do imperador, regimento criado, como o próprio nome sugere, tempos depois do Sete de Setembro. Reconhecia intenções morais na pintura, bem como seu caráter exemplar, do ponto de vista das lições e experiências que à história cabia difundir, ao qual se aliava o objetivo mais evidente de uma obra de arte: expor à contemplação uma cena irremediavelmente perdida mas da qual não se questionava a existência.

  • Ao lado da enorme propagação da imagem, essas condições e o obscurecimento do relato do pintor contribuíram para que até hoje o quadro ora seja interpretado como registro fidedigno e indelével da fundação nacional, ora seja visto como mera falsificação da história e da arte. Em ambos os casos desconsidera-se a representação, assim como suas matizadas e ainda pouco discutidas implicações políticas e historiográficas, entre as quais duas merecem destaque. O painel consolidou a memória do Sete de Setembro ao referendar a celebração do Império e da monarquia constitucional que o Monumento do Ipiranga expressava. Nesse sentido, pintura e obra de alvenaria selaram o significado da data, sobrepujando as intensas polêmicas que cercavam, desde a década de 1820, a cronologia da construção da nacionalidade. A partir de então, o Sete de Setembro transformou-se em marco inquestionável da história do Brasil. Simultaneamente, e pela primeira vez, Pedro Américo idealizou em detalhes o lugar em que ocorreu a proclamação, delineando o solo paulista como foco originário da nação, o que auxiliou a sedimentar interpretação de fins do século XIX, segundo a qual os destinos do país estavam entrelaçados aos destinos de São Paulo. Em face de questões como essas, talvez seja o momento de interrogar mais detidamente o saber histórico ali inscrito.

    Cecília Helena de Salles Oliveira é historiadora, professora do Museu Paulista e do Programa de Pós-Graduação em história social da Universidade de São Paulo.