“Poesia é intraduzível” – quantas vezes não ouvimos essa frase? Como traduzir um texto poético, quando nele os aspectos materiais da língua – sons, ritmo, a ordem das palavras, por vezes até mesmo o espaço ocupado pela escrita na folha em branco – têm papel tão fundamental que parece impossível dizer a mesma coisa em outra língua? Mas seja como for, tem-se traduzido poesia desde sempre. No caso dos clássicos gregos e latinos, podemos identificar duas tendências básicas. A primeira é traduzir, sobretudo, o sentido literal dos textos, não se importando com sons e ritmo, renunciando a recriá-los na língua de chegada, tarefa árdua que exige talento literário.
Essa solução tem sido muito comum no caso dos poetas gregos e latinos. Professores universitários frequentemente propõem traduções assim, em prosa, em edições cheias de notas e comentários eruditos. Para divulgar esses textos, opta-se por traduções mais atentas ao sentido literal. Com frequência, em nota, o tradutor aponta no original o efeito de som, de ritmo etc. que não verteu para a língua do leitor. Quando a tradução em prosa é correta, em português elegante e destinada ao leitor curioso também de erudição, não há por que rejeitar este tipo de postura tão comum. Traduções assim têm seu público. A universidade, praticamente o último refúgio dos estudos clássicos por aqui, produz muita tradução de textos literários, frequentemente de poesia. Publicar essas traduções, mesmo quando não têm pretensões literárias, é uma espécie de missão cultural num país em que ainda tanta coisa importante resta por traduzir e retraduzir.
Mas se o trato com os poetas antigos se resumisse a isso, seria catastrófico: o leitor ignorante do grego e do latim teria sempre uma ideia muito pálida do original, reduzido, na tradução, a uma interpretação do sentido literal. Poesia não se resume ao sentido literal; poesia é som, é ritmo. Como disse o poeta Paul Valéry, “os mais belos versos do mundo ficam insignificantes ou sem sentido uma vez rompido seu movimento harmônico e alterada sua substância sonora”.
E aqui temos a segunda tendência: a tradução que tenta recriar, na língua de chegada, efeitos de som, ritmo etc. do original, propondo um texto também poético. No Brasil, na reflexão sobre este tipo de tradução, por vezes chamada criativa ou poética, um nome se destaca: o do poeta e tradutor Haroldo de Campos (1929-2003), que insistia no princípio da tradução como “transcriação”. Como resposta à “tese da impossibilidade em princípio da tradução de textos criativos”, Haroldo propunha e praticava tradução criativa, a recriação desses textos.
Na academia, a ideia de uma recriação dos clássicos gregos e latinos, que por vezes deixa de lado o sentido literal para recriar a teia sonora e o ritmo do poema, encontrou, no passado, certa resistência. Entende-se essa resistência inicial em profissionais acostumados a tratar o texto como documento ou fonte e a traduzi-lo literalmente, numa suposta “fidelidade” ao sentido. Estranha fidelidade que deixa de lado o trabalho poético com a linguagem próprio da poesia. Hoje em dia, porém, temos trabalhos poéticos muito interessantes de tradução dos clássicos realizados por professores universitários. Por exemplo, tivemos uma tradução integral da obra do lírico latino Catulo (século I a.C.) em forma poética pelo professor João Ângelo, da USP, e um número grande de traduções instigantes e criativas de obras gregas pelo professor Trajano Vieira, da Unicamp. Esses trabalhos mostram que a academia pode aliar o rigor próprio dos eruditos ao talento criativo.
Haroldo de Campos via num certo maranhense do século XIX, Manuel Odorico Mendes (1799-1864), um precursor das suas teoria e prática da tradução criativa. Odorico foi político importante durante o Império, deputado mais de uma vez, fundador de jornais. Mas em 1847 ele abandonou a política e o Brasil e foi viver na França, com uma parca pensão de funcionário público aposentado. Ali, encontraria material para a tarefa a que se dedicou por todo o resto da vida: a tradução de toda a obra de Virgílio e de Homero. Em 1854, publicou a Eneida Brasileira; em 1858, todas as obras de Virgílio num só volume, o Virgílio Brasileiro. Sua tradução da Ilíada e da Odisseia só foram editadas depois de sua morte. Todas essas traduções foram depois republicadas no Brasil em edições repletas de notas e comentários a um texto em português reconhecidamente difícil. Entre outras coisas, Odorico latiniza ou heleniza a língua portuguesa, fazendo, então, com que o português se deixe influenciar fortemente pelas línguas em que foram escritos os originais. Muito da melhor tradução dos clássicos no Brasil de hoje parece seguir essa mesma diretriz que, de resto, está longe de ser nova.
Odorico Mendes foi um desses tradutores que abandonaram o discurso da suposta fidelidade e a desculpa de que a poesia é mesmo intraduzível. No subtítulo mesmo de sua tradução da Eneida se lê “tradução poética”. Mas o que, no aspecto material do latim ou do grego, parece mais intraduzível, e de que forma Odorico desafiou esse aparente intraduzível, encontrando em português equivalências possíveis?
No latim, a duração (maior ou menor) das vogais e das sílabas exerce papel no sistema da língua. Os poetas jogam com a duração de maneira a criar significação a partir do contraste entre uma sucessão de longas, que torna o ritmo mais lento, e de breves, que o faz mais rápido e ágil. No livro IV da Eneida de Virgílio (séc. I a.C.), temos um exemplo interessante. O texto descreve um momento da ida do troiano Eneias e da rainha Dido à caça. O texto da tradução é difícil, mas vale a pena vencer as dificuldades para saboreá-lo. No original temos (o sinal em cima das vogais marca duração longa):
P?stqu(am) ?lt?s u?nt(um) ?n m?nt?s ?tq(ue)?nuia l?stra,
?cce ferae, saxi deiectae uertice, caprae
Decurrere iugis...
Em tradução literal:
Depois que se veio a altos montes e recessos intransitáveis,
Eis que cabras selvagens, precipitadas do cume da rocha,
Correram dos picos...
O primeiro verso citado é pródigo em longas, o que torna o ritmo mais vagaroso. O segundo começa com uma longa seguida de duas velozes breves, um ritmo saltitante. A tradução de Odorico salienta a ideia da rapidez e imita no som e no ritmo a ação descrita:
Chega-se a alpestres montes e ínvias furnas,
Eis, de íngreme rochedo, despenhando-se,
Bravias cabras pelos picos pulam.
O longo “despenhando-se” em fim de verso choca-se com a sucessão de dissílabos do verso seguinte (apenas “bravias” é exceção), em que só aparecem paroxítonas. O ritmo saltitante, ágil, alia-se a uma sonoridade realçada pela forte repetição do som /p/:
Bravías cábras pélos pícos púlam.
Odorico não só encontrou meio de reproduzir um efeito rítmico do original, mas até mesmo o realçou em sua recriação, criando um verso muito hábil, rítmica e sonoramente. No que diz respeito ao ritmo, Gonçalves Dias assegurou: “Odorico metrifica como um rei”.
No passado, Odorico foi muito criticado, inclusive na academia; hoje, seu projeto de tradução parece geralmente apreciado. Por vezes, como é natural, apontam-se suas escolhas discutíveis, certa construção de frases muito complicada, por exemplo. Seja como for, um pioneiro. Claro que houve outros no Brasil que praticaram traduções poéticas, mas Odorico é o primeiro a realizar uma ampla reflexão sobre sua tarefa tradutória e a traduzir todo o Virgílio e todo o Homero em forma poética, tarefa em que ainda não foi igualado. Não à toa, Haroldo o chamava “patriarca” da tradução criativa.
Paulo Sérgio de Vasconcellos é professor de latim do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, tradutor de poemas selecionados de Catulo e autor de Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio (Humanitas, 2001).
Saiba Mais:
STEINER, George. Depois de Babel. Questões de linguagem e tradução. Curitiba: UFPR, 2005.
ECO, Umberto. Quase a mesma coisa: experiências de tradução. São Paulo: Record, 2007.
MENDES, Odorico. Eneida Brasileira. Campinas: Editora da Unicamp / Fapesp, 2008.
A língua da poesia
Paulo Sérgio de Vasconcellos