A literatura desce o morro

Elena Pajaro Peres

  • Capa das principais obras do autor. Em seus livros, era fácil reconhecer personagens do cotidiano, fontes de sua inspiração.Um malandro vestido de branco, com uma navalha no bolso e cheio de ginga, acaba de ter seus sapatos lustrados por um pequeno engraxate. O cenário é um salão de sinuca conhecido pelos parceiros de jogo como Velho Celestino; o bairro é a Lapa, em meados da década de 1950. Nessa descrição, tudo parece de acordo com as imagens que se formaram ao longo do tempo a respeito do recanto boêmio carioca, mas o inusitado dessa cena inicial do conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, do escritor João Antônio (1937-1996), publicado em 1963, é que, contrariando as aparências, a história não começa na famosa Lapa dos arcos iluminados. A Lapa que surge naquelas páginas é a paulistana, mais lembrada como um bairro operário. Era lá, nas margens da estrada de ferro, que se cruzava diariamente uma multidão de trabalhadores, um prato cheio para os malandros de plantão.

    João Antônio recriou literariamente esse cotidiano, revelando um lado até então pouco conhecido de São Paulo. Com seu livro de estreia, que tem o mesmo título do conto, ganhou notoriedade e dois prêmios Jabuti em 1964. Malagueta, Perus e Bacanaço foi o início da trajetória de um escritor que registrou com rara sensibilidade as gírias, os gestos, o jeito de ser daqueles que levavam a vida tentando se virar.

    Filhode mãe afrodescendente do estado do Rio de Janeiro e de pai português, João Antônio nasceu num bairro pobre, na divisa entre as cidades de Osasco e São Paulo. Sua história de menino levado até se tornar escritor reconhecido começou no Morro da Geada, em meio às rezas de sua bisavó Lula e de sua avó Nair, a viva presença de uma dúzia de tios, tias e primos e a solidariedade dos vizinhos, curtindo o que ele chamava de espontânea “liberdade do balacobaco”. Sem água encanada nem eletricidade, teve uma infância simples e, como ele contava, cercada de afeto. Por volta dos sete anos, mudou-se com os pais para o Beco da Onça, também chamado de Beco Navio Negreiro, na Vila Pompeia, onde tinham um pequeno armazém.

    Foi nessa fase da vida que passou a frequentar rodas de chorões e seresteiros. Começou a aprender bandolim, seguindo os passos do pai, que tocava vários instrumentos de cordas, mas foi impedido pela mãe, temerosa de que o filho enveredasse pelos caminhos da boemia. Desistiu. Em seu texto autobiográfico “Paulo Melado do Chapéu de Mangueira Serralha” (1982), refletiu sobre essa presença da música em sua literatura. Em vários escritos, rendeu tributo a músicos como Noel Rosa (1910-1937) e Aracy de Almeida (1914-1988).

    A vida no Beco era interessante, mas lá também não ficou por muito tempo. A cidade, em ritmo de crescimento acelerado, estava se transformando, e poucos eram os que permaneciam por muitos anos morando no mesmo local. Seguiu, com sua família, um caminho de mudanças em busca de trabalho, moradia, lazer e estudo. Isso fez com que tivesse a oportunidade de conhecer São Paulo detalhadamente e de se acostumar com o trânsito incessante de gente que vinha dos mais diferentes lugares. Ao descer o morro, espaço onde depositou sua mais autêntica afetividade, percorreu as ruas da Liberdade, da Lapa, do Centrão, do Bom Retiro, do bairro operário do Jaguaré e da Vila Anastácio. Perambulava também pelas margens dos rios Tietê e Pinheiros, ainda ocupadas pelas derradeiras hortas, pelo futebol domingueiro e pelas favelas que começavam a crescer. Em cada rua que passava a pé, de bonde, de ônibus, de bicicleta ou de patinete, foi depositando seu afeto, foi construindo suas memórias.

    Esse vaivém marcou sua literatura. Seus personagens vagam pela cidade de dia e à noite, procurando algo que nem sempre é revelado, numa tentativa de sobrevivência e também de fuga do tédio e da monotonia do anonimato que muitas vezes se instala na cidade grande. Esse caminhar incessante e cheio de volteios transparece desde seus contos de estreia, como “Busca”, “Afinação da arte de chutar tampinhas”, “Frio”, “Visita”, e no próprio “Malagueta, Perus e Bacanaço”, todos publicados em 1963, até seus últimos textos, como se vê em “Abraçado ao meu rancor”, de 1986.

    Com essas narrativas, é possível compor uma geografia histórica e literária de São Paulo. É surpreendente perceber que os lugares descritos nos contos de forma leve e rápida realmente estavam lá e, em muitos casos, ainda estão, mesmo que totalmente modificados. Assim se pode reconhecer na Lapa, nas proximidades do Mercado Municipal, construções que aparecem no conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, como a que abrigou o salão Velho Celestino e também a do antigo cinema, agora ocupada por um grande magazine. O leitor é convidado a entrelaçar suas lembranças com as do escritor e com as dos outros habitantes da cidade, transformando a leitura num instigante exercício de reconhecimento.

    Os personagens eram velhos conhecidos seus: meninos engraxates, malandros, mestiços, trabalhadores informais, operários, soldados rasos, guardadores de carros, seguranças de casas noturnas, mendigos, moleques de rua. João Antônio acreditava que a literatura se faz a partir das experiências de vida, e essa crença vibra em cada página de seus livros. Quando narra a descoberta da sinuca pelo menino do conto “Meninão do caixote” (1963), ele o faz, como gostava de dizer, de dentro para fora. Ele próprio tinha sido um admirador e aluno precoce dos tacos afamados da capital paulista.

      Após o sucesso de seu primeiro livro, foi para o Rio de Janeiro trabalhar no Jornaldo Brasil, voltando a São Paulo alguns anos depois e incorporando-se à equipe da revistaRealidade. No final da década de 1960 retornou ao Rio de Janeiro, onde atuou em outras publicações, como a revista Manchete e O Globo. Nos anos 1970, participou da imprensa alternativa, escrevendo para O Pasquim e Movimento, entre outros jornais da “imprensa nanica”, denominação criada por ele. Sua experiência literária, amplamente baseada na vida concreta e sentida de cada um, criou importante ponto de contato com a escrita jornalística, que ele procurava aproximar ao máximo do texto artístico. Isso pode ser observado em sua reportagem “Um dia no cais”, sobre o Porto de Santos, publicada na Realidade em 1968 e considerada pioneira no gênero “conto jornalístico”.

    O improviso é uma característica que cerca os personagens do autor, estejam em São Paulo ou no Rio. Eles têm a capacidade de se virar em situações inesperadas. Em casos extremos, até em oco de árvore era possível morar, ou se esconder, como o protagonista do conto “Guardador”(1986), apelidado Jacarandá, aquele que andava meio de lado, tropicando para conseguir alguns trocados enquanto vigiava os carros estacionados numa praça em Copacabana. Estavam na luta, tentando driblar ou sendo driblados pelas dificuldades do dia a dia, assim como João Antônio.

    Em1970, após uma crise de estafa, passou uma temporada no Sanatório da Muda, na Tijuca, Rio de Janeiro. Era o mesmo local onde Lima Barreto (1881-1922), seu escritor predileto, estivera internado. Lá iniciou a redação de Calvárioe Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, publicado em 1977. Dessa experiência também nasceu o texto “Casa de Loucos”, de 1976.

    Somenteem 1975 lançou seu segundo livro, Leãode Chácara, com três contos dedicados à cidade do Rio de Janeiro, que, após alguns anos de convivência, conhecia em sua intimidade de frequentador das noitadas cariocas, como passageiro das barcas para Niterói, das suas andanças pela Central do Brasil ou por Copacabana. O livro também trazia o conto “Paulinho Perna Torta”, publicado originalmente em 1965. A história se passa nas proximidades da estação ferroviária da Luz, em São Paulo, região denominada pela crônica policial de “Boca do Lixo”, hoje conhecida como Cracolândia. 

    Publicou muitos outros títulos, e em 1993 ganhou seu terceiro Prêmio Jabuti com o livro Guardador. Seu último trabalho publicado foi A Dama do Encantado, em 1996, ano de sua morte. Recentemente, teve parte de seus textos reeditada. Sem dúvida, o teor memorialístico da ficção de João Antônio, na qual repercutem, a cada linha, os ecos do Morro da Geada, permite, de forma intensa, a aproximação da sua obra e de sua biografia com a história urbana e a história da cultura. Sua literatura é fonte privilegiada para pesquisadores e interessados no estudo das cidades e de suas populações moventes na segunda metade do século XX, permitindo o acesso indireto a elementos sutis do cotidiano e das sensibilidades que não podem ser percebidos por meio de outros registros.

     

    Elena Pajaro Peresé autora da tese “Exuberância e Invisibilidade. Populações Moventes e Cultura em São Paulo, de 1942 ao início dos anos 70” (USP, 2007).

     

    Saiba Mais - Bibliografia

     

    ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

    PAIXÃO, Fernando. “João Antônio: cartas de desabafo”. In:Revistado Instituto de Estudos Brasileiros, nº 51.São Paulo: set. 2010.

    RIBEIRONETO, João da Silva. João Antônio (Literatura comentada). São Paulo: Abril Educação, 1981.

     

    Saiba Mais - Internet

    ArquivoJoão Antônio/Unesp

     www.assis.unesp.br/joaoantonio