A luta pela farra

Paulo da Costa e Silva

  • Enquanto em alguns lugares os relatos mencionam uma festa jocosa, alegre e sem grandes violências – além do estresse do boi –, outros depoimentos revelam uma festividade marcada pela crueldade, em que homens, mulheres e crianças, munidos de pedras, garrafas, facas, chicotes e pedaços de pau, se divertem perseguindo e espancando até a morte um animal apavorado. Todos os anos, durante a Quaresma e a Semana Santa, comunidades do litoral de Santa Catarina celebram a polêmica farra do boi. Desde sua proibição pelo Supremo Tribunal Federal em 1997 – quando foi considerada prática criminosa por ser intrinsecamente cruel –, o governo do estado monta barreiras policiais na entrada das cidades onde é mantida a tradição. Sua proibição se deve, em grande parte, aos esforços empreendidos, a partir dos anos 1980, por várias entidades de proteção aos animais.

    Fontes da ONG internacional WSPA-Brazil (World Society for Protection of Animals) afirmam ter visto as mais diversas práticas de tortura contra esses bois, desde a utilização de gasolina para incendiá-los até a amputação de membros do animal ainda em vida, como o rabo e as patas, e até os olhos. Segundo esses relatos, os participantes tomam o “cuidado” de não matar o animal rapidamente, estendendo o prazer da tortura por até três dias seguidos.

    A tradição chegou ao Brasil com os imigrantes açorianos, entre 1748 e 1756. Desde essa época, registros orais e escritos falam de um divertimento popular conhecido como “brincadeira do boi bravo” ou “boi-de-campo”, que consistia em encomendar um boi de tropa em ocasiões festivas e dividir a carne entre os que haviam contribuído para a compra. Apesar de proibida, a farra do boi continua sendo feita, de forma explícita ou clandestina, em várias comunidades catarinenses.

    O município de Governador Celso Ramos, 30 quilômetros ao norte da capital, famoso por ser um dos principais pontos de farra do boi, vem assistindo a iniciativas que, inspiradas nos regulamentos legais existentes no Arquipélago dos Açores, visam liberar a prática criando um ordenamento por meio de lei municipal de iniciativa popular. Não se trata de uma iniciativa em âmbito estadual nem de uma tentativa de contestar o acórdão federal, mas de uma interpretação de que o Supremo condenou o estado de Santa Catarina por não reprimir a prática de possíveis maus-tratos aos animais, mas não a manifestação cultural em si, e que a festa e a tradição poderiam ser mantidas, desde que se estipulassem restrições aos maus-tratos infligidos aos animais.

  • Geógrafa e gerente de desenvolvimento da ONG de proteção aos animais WSPA-Brazil, Elizabeth MacGregor acompanha (ou combate) há muitos anos as farras, e é totalmente contra qualquer tipo de legalização: “Ainda que determinadas farras sejam mais amenas do que outras, os animais são sempre maltratados. Em Governador Celso Ramos, sobretudo, ela é muito agressiva, e, apesar da proibição, continua sendo praticada clandestinamente, com a conivência das autoridades locais e da polícia”. Elizabeth conta que, para manter a farra clandestina, a cidade se fecha e não permite qualquer tipo de registro da tradição: “Durante a Semana Santa, nenhum jornalista consegue entrar em Governador Celso Ramos, para que não haja registro das atrocidades ali cometidas. Alguns farristas chegam a apedrejar os carros da imprensa, sendo impossível filmá-la ou fotografá-la. E para esconder melhor o ritual, as farras passaram a ser feitas à noite”.

    No entanto, se consideramos a farra do boi como traço cultural da região, a discussão tende a ficar mais complexa. O antropólogo Eugenio Lacerda, autor do livro Bom para brincar, bom para comer: a polêmica da farra do boi no Brasil, defende uma posição menos radical: “A chamada farra do boi, que muitos populares insistem em dizer que é uma invenção da mídia por chamarem-na, simplesmente, de “brincadeira do boi”, está para os açoriano-brasileiros como o carnaval para os cariocas e os rodeios para os gaúchos. Ela cristaliza a identidade cultural local e suas formas de sociabilidade”. E arremata: “Não é mais possível deixar uma tradição destas à revelia. A única saída é a organização local e um consenso mínimo sobre regras públicas de responsabilidade civil”.

    Mas para Elizabeth MacGregor, nenhuma tradição justifica qualquer ato de violência contra qualquer animal, e a farra do boi deve, sim, ser duramente coibida: “Tradição é só um hábito, e não deve, necessariamente, permanecer. Não há mais cabimento em se cultivar um ritual com esse grau de crueldade e violência”. Para o antropólogo, no entanto, “cultura é sinônimo de negociação”, e não se pode extinguir uma tradição tão arraigada por decreto: “Essas comunidades precisam ter voz e ser ouvidas. Sabem que a tradição não é uma unanimidade. Uma das coisas interessantes que estão acontecendo no município de Governador Celso Ramos, lugar conhecido como território livre da farra do boi, é a possibilidade de um veto por meio de um abaixo-assinado com a adesão de mais de 50% dos moradores. As farras se tornaram um ícone de resistência cultural”.

    Mas, afinal, será possível conciliar uma tradição considerada cruel com uma sensibilidade moderna que repudia esses atos contra animais? “Não é possível. São éticas irredutíveis umas às outras. É o universalismo contra o particularismo, tensão essencial da cultura política. Como você poderá convencer alguém que é contra as touradas de que, ao contrário, para seu aficionado ela é plena de significado cultural? Ademais, de que sensibilidade moderna estamos falando? É esta de tratar os animais como humanos, cosmetizando-os em salões de beleza e fazendo deles pretexto para terapias ocupacionais? Acho que isso é um novo tipo de barbarismo, porque nada violenta tanto os animais como tratá-los como se fossem humanos”, responde Eugenio Lacerda, indicando a continuação do embate entre a tradição local e os valores universais.