O angolano Antonio Angria aproveitou as turbulentas primeiras décadas do século XIX na América Latina para conquistar sua liberdade. Seu primeiro senhor era provavelmente um capitão de navio que o levou a Montevidéu. Lá, Antonio foi vendido a Francisco, um rico proprietário para quem trabalhou até o início da guerra na Banda Oriental, como era chamada a região que veio a se tornar o Uruguai. Ao fugir, alistou-se como soldado do general José Artigas e passou a lutar nas campanhas militares contra os luso-brasileiros na fronteira.
O caso de Angria é exemplar. Os patriotas platinos, nos programas de independência de seus países, incluíram medidas que favoreciam a emancipação dos escravos, tais como a Lei do Ventre Livre e o fim do tráfico. Em 1813, determinaram que os escravos dos países estrangeiros seriam livres se entrassem no território das Províncias Unidas do Rio da Prata. Ao mesmo tempo, os chefes militares prometiam a liberdade aos escravos dos inimigos que se alistassem nos seus exércitos.
Era um período de profundas transformações na América do Sul. A Corte se estabeleceu no Rio de Janeiro em 1808, tornando a cidade a capital do Império português. Em Buenos Aires, os patriotas tomaram o poder em maio de 1810, deflagrando as guerras de independência no Vice-Reino do Rio da Prata, que incluía os atuais países de Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia. Em setembro de 1822, D. Pedro proclamou a independência do Brasil. Entre 1810 e 1828, luso-brasileiros e hispano-americanos se envolveram em uma série de conflitos militares na região Platina, conhecidos como as Guerras Cisplatinas.
Acompanhando uma característica que marcou a era das revoluções, período de grandes transformações políticas e sociais entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX, tanto os hispano-americanos como os luso-brasileiros utilizaram o serviço militar de escravos e negros livres. Os portenhos já tinham experiência no assunto. Durante as invasões inglesas a Buenos Aires (1806-1807), as tropas de escravos e libertos foram fundamentais para repelir os invasores. Além dos problemas que naturalmente ocorriam ao se colocar em prática o recrutamento de homens negros, escravizados ou livres (discussões sobre direitos de propriedade, alforria e hierarquias militares), a condição de fronteira entre dois impérios revestia o fenômeno de maior complexidade.
Muitos escravos aproveitaram a desorganização e a diminuição da vigilância senhorial produzidas pela guerra para fugir em direção aos domínios territoriais dos inimigos. Poderiam oferecer seus serviços militares em troca da liberdade ou encontrar proteção. A partir de 1810, as fugas de escravos do Rio Grande do Sul para a Banda Oriental alarmaram os proprietários e as autoridades luso-brasileiras.
O declínio da escravidão no Rio da Prata aconteceu ao mesmo tempo em que ela se fortalecia no Brasil. A instalação da Corte no Rio de Janeiro e a abertura dos portos favoreceram o dinamismo econômico do Centro-Sul do país. Aumentou o comércio, a produção de gêneros agrícolas e, consequentemente, a importação de escravos africanos. A produção do charque no Rio Grande do Sul, realizada por trabalhadores escravizados, foi amplamente favorecida por essa conjuntura de crescimento econômico. A demanda aumentou, a disponibilidade de mão de obra também e o charque platino, principal concorrente no mercado atlântico, foi abalado pelos conflitos militares.
Se, por um lado, contribuíam para o fortalecimento da escravidão no sul do Brasil, esses conflitos ofereciam oportunidades inéditas para escravos e negros livres melhorarem suas condições de vida. Na batalha de Catalán, em janeiro de 1817, as forças artiguistas, comandadas por Andrés Latorre, foram derrotadas. Entre os prisioneiros capturados estava Antonio Angria. Ele foi remetido a Porto Alegre, onde ficou realizando serviços públicos por alguns anos até sair da prisão. Apesar das desventuras pelas quais passou, Antonio não foi reconduzido à escravidão: foi solto como liberto.
Em 1825, já conhecido vulgarmente como Antonio “Guerrilha” (seguramente em razão de seu passado como soldado nas campanhas fronteiriças), foi novamente preso em Porto Alegre. Acusado de roubar quatro mil réis do pardo José dos Santos, as autoridades suspeitavam que ele tivesse conexões com um grupo de negros libertos que estava praticando roubos e realizando pequenos crimes na cidade e nos arredores. Antonio costumava oferecer seus serviços “para quem o quisesse alugar”. Normalmente, empregava-se como remeiro de navegação ligeira nas vias fluviais que ligavam a cidade de Porto Alegre aos portos do interior, um trabalho “pesado e de risco de vida”, nas palavras do advogado que o defendeu das acusações.
As autoridades judiciárias se preocupavam com os libertos, sobretudo por receio de que suas ligações com escravos se tornassem potencialmente perigosas para a ordem social. Há relatos da existência de pequenos quilombos e ajuntamentos de fugitivos na região de Porto Alegre que contavam com o apoio decisivo dos remeiros negros.
Em 1825 os orientais iniciaram um movimento para repelir a ocupação brasileira. Esse cenário alarmou as autoridades políticas rio-grandenses, e qualquer tipo de subversão interna, como fugas, quilombos e revoltas de escravos, era visto como potencialmente perigoso e favorável ao inimigo. Na cidade de Rio Grande, a proximidade com a fronteira acirrava ainda mais os ânimos. Eram comuns as acusações de pessoas que estariam incitando escravos a organizarem revoltas ou a fugirem para se alistar no exército platino. Foi essa a denúncia contra Manoel Antonio da Cruz. Preso em 1825 no distrito de Quitéria, em Rio Grande, ele teria seduzido escravos para seguirem o partido inimigo. Manoel era um pardo, ex-escravo, natural de Rio Grande, casado, 48 anos de idade. O interessante é que ele era sargento da Companhia dos Homens Pardos. As companhias milicianas faziam parte do exército auxiliar e eram divididas, desde o período colonial, em companhias de homens brancos, pardos e pretos. Nas primeiras décadas do século XIX, as companhias de homens de cor cresceram e muitos pretos e pardos tiveram oportunidades de se alistar no exército brasileiro. Alguns chegaram a assumir postos de oficiais, trilhando um caminho de ascensão social.
Manoel, como miliciano, não recebia soldo regular, de modo que precisava recorrer a outros expedientes para assegurar sua sobrevivência. Ele disse que vivia de seu trabalho e era lavrador. Uma testemunha afirmou que Manoel costumava roubar gado e cavalos. O comandante interino, que o remeteu à cadeia, ampliou as acusações. Segundo ele, Manoel andava pelas casas do distrito conversando secretamente com os escravos, “seduzindo a escravatura a favor do partido inimigo (…) contra a causa preciosa do majestoso Império do Brasil”. Além disso, disse que “este mesmo pardo conserva em si todas as qualidades capazes de grande revolucionário, e nunca perde ocasião de haver a si quanto pode do suor alheio, e os vizinhos todos estão prontos a fazer um nós abaixo assinados a fim de o dito não existir nesta Província, pois no todo é inquietador dos Povos, no lugar onde reside”.
As acusações não foram provadas e, depois de algum tempo na prisão, Manoel foi libertado. O episódio demonstra como os conflitos políticos e militares do período das independências no Rio da Prata e no Brasil trouxeram ao mesmo tempo instabilidade e novas possibilidades de resistência e ascensão. Os escravos e os libertos enfrentaram a nova realidade acionando diversas estratégias. As fugas, a resistência cotidiana e até mesmo a colaboração com seus senhores permitiu-lhes conquistar a liberdade ou obter melhores condições de trabalho e sobrevivência. Como é comum nos tempos de incerteza, as guerras e os conflitos militares podiam resultar em tragédia ou triunfo para a vida dos negros escravizados e livres na fronteira sul do Brasil.
Gabriel Aladrén é autor do livro Liberdades negras nas paragens do sul: alforria e inserção social de libertos em Porto Alegre, 1800-1835 (Editora FGV, 2009).
Saiba mais:
ANDREWS, George Reid. América Afro-Latina (1800-2000). São Carlos: Edufscar, 2007.
BLACKBURN, Robin. A queda do escravismo colonial (1776-1848). Rio de Janeiro: Record, 2002 [1988].
BLANCHARD, Peter. Under the flags of freedom. Slave soldiers and the wars of independence in Spanish South-America. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 2008.
A luta por liberdade
Gabriel Aladrén