A mágoa em chuteiras

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli

  • O escrete canarinho vaiado em um estádio com 110 mil... brasileiros? Ainda mais logo após a histórica conquista do tricampeonato? A cena, que parece inconcebível no país do futebol, aconteceu no Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, numa partida da seleção contra um combinado gaúcho, em 1972.

    Nada a ver com protesto político em tempos de ditadura escancarada. Foi, sobretudo, um gesto bairrista. Um repúdio dos gaúchos à sua mísera representação no selecionado nacional.

    “Noventa milhões em ação”, conclamava o hino “Pra frente, Brasil”, de Miguel Gustavo, mote da Copa de 70, que vinha bem a calhar para os planos do governo Médici naqueles anos de repressão extrema. Em pleno Maracanã, durante um jogo da seleção, o próprio presidente havia criado outro lema ufanista, propício à mistura de futebol com política: “Ninguém segura este país!” O regime aproveitava-se do clima de euforia reinante. Mas os gaúchos não se sentiam integrados a essa festa.

    O estopim para o mal-estar foi a convocação da seleção brasileira para a Taça Independência (ou Mini-Copa), em comemoração aos 150 anos da emancipação do país. O campeonato, criado pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD, antecessora da atual Confederação Brasileira de Futebol, CBF) seria disputado entre junho e julho de 1972 em vários estádios do país. Na lista divulgada pelo técnico Zagallo não havia nenhum atleta do Rio Grande do Sul. Algo indesculpável, especialmente pela ausência de um nome: Everaldo.

    Herói do Grêmio, o lateral-esquerdo Everaldo Marques da Silva ajudara seu time a conquistar o tricampeonato gaúcho de 1966, 1967 e 1968. Convocado para a Copa de 1970, no México, foi titular nos sete jogos que levaram o Brasil ao título inédito. Para os gaúchos, seu feito também era sem igual: Everaldo foi o primeiro jogador do estado a conquistar uma Copa do Mundo. Ao voltar, recebeu do Grêmio homenagem à altura: o clube incorporou à sua bandeira uma estrela dourada. A estrela era Everaldo.

    Passada a Copa, ele voltara a atuar pela seleção em 1971. Por isso a surpresa geral quando não apareceu na lista de Zagallo. Everaldo, dono da posição desde o Mundial, sequer era reserva, simplesmente não fora chamado! Para piorar, outro craque gaúcho, Claudiomiro, do Internacional, mesmo tendo jogado pela seleção em duas partidas, também foi preterido pelo técnico. Nem se discutia a prevalência dos jogadores do eixo Rio-São Paulo, onde estavam os principais clubes do país. A comparação era com Minas Gerais – equivalente aos gaúchos em importância futebolística–, que contribuía com quatro jogadores: Dirceu Lopes e Wilson Piazza, do Cruzeiro, Dario e Vantuir, do Atlético Mineiro.

    A crise trouxe à baila a ideia de um Rio Grande sempre esquecido, relegado a um segundo plano do futebol brasileiro, e que, no entanto, sempre cumprira a sua parte quando lembrado. A “afronta” ao tricampeão Everaldo ganhava foros de ofensa a todos os rio-grandenses. Num raro momento de união entre colorados e gremistas, fortalecia-se a identidade gaúcha justamente quando a ditadura tratava de moldar um Brasil de fantasia, unido, próspero e feliz, muito bem representado pela seleção. Para contornar a situação, o presidente da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), Rubens Hoffmeister, desafiou a seleção brasileira para uma partida contra um combinado estadual. Depois de muitas negociações, o jogo foi marcado para o dia 17 de junho de 1972.

    As provocações começaram ainda antes do jogo. A escolha de um jornalista para comandar o time gaúcho – Aparício Vianna e Silva, o Apa – foi maliciosamente criticada por Zagallo. A farpa tinha outro endereço: João Saldanha, o jornalista que o antecedera na seleção, e de quem Apa fora “olheiro”. Zagallo também questionou a convocação feita por Apa, só com jogadores do Grêmio e do Internacional. Perguntou se só jogadores dos grandes clubes de Porto Alegre representavam todo o estado. A repercussão foi a pior possível. Aparício tinha sólido prestígio em todo o Rio Grande, e não havia qualquer dúvida quanto à legitimidade da seleção Gre-Nal. Continuava o descaso com o futebol gaúcho!

    A seguir, as provocações foram sobre boatos de que os jogadores da seleção gaúcha – que já era tratada pejorativamente de “combinado Gre-Nal” ou mesmo “combinado sul-americano”, referindo-se à presença de Ancheta (uruguaio), Figueroa (chileno) e Oberti (argentino) – poderiam machucar propositalmente os da seleção brasileira. As respostas dos gaúchos tornaram-se também agressivas, apelando para os símbolos mais caros ao estado.

    No dia do jogo, os jornais davam o tom do clima de guerra que havia sido criado. “Sabem o que é? O estado inteiro em torno de uma mesma equipe, os gaúchos magoados pela marginalização, a oportunidade de lavar a alma, o ressentimento, a raiva, o entusiasmo, a hora e a vez”, sintetizou o jornalista esportivo Lauro Quadros na Folha da Manhã.

    Naquele sábado, o Beira-Rio recebeu o maior público de sua história: 110 mil pessoas. Algumas bandeiras do Brasil chegaram a ser queimadas pelos gaúchos. Notícia que a censura, obviamente, não permitiu que a imprensa divulgasse. As equipes do Brasil e do Rio Grande do Sul entraram em campo juntas, carregando uma imensa bandeira brasileira, mas vaias ensurdecedoras tomaram conta do estádio, sobrepondo-se à execução do Hino Nacional.

    Depois que soou o apito, sempre que a equipe brasileira estava com a posse da bola repetiam-se as vaias. Situação que perdurou pelos noventa minutos da disputa. Atletas e membros da comissão técnica mostravam-se visivelmente tensos, como se estivessem atuando no exterior. O Brasil jogou com Leão (Sérgio), Zé Maria, Brito, Vantuir e Marco Antônio, Clodoaldo, Piazza e Rivelino, Jairzinho, Leivinha e Paulo César. Do lado gaúcho atuaram Schneider, Espinosa, Figueroa, Ancheta, Everaldo e Carbone, Tovar, Torino e Valdomiro, Claudiomiro e Oberti (Mazinho).

    Para completar o constrangimento, a seleção não passou de um empate com o combinado estadual: 3 a 3, com os gaúchos sempre na frente do marcador, e houve quem dissesse que o resultado havia sido “arranjado”.

    As vaias e o mau resultado provocaram comentários indignados da imprensa do resto do país sobre a falta de patriotismo dos gaúchos. O comentarista Luís Mendes, da Rede Bandeirantes de Televisão, classificou a atitude dos torcedores gaúchos de antidesportiva e antibrasileira: “Meus pêsames ao mundo esportivo gaúcho, pela atitude antipática de vaiar a seleção. Não fossem os apupos dessa massa, o selecionado do Brasil teria ganhado tranquilamente desse combinado sul-americano, que, digo e repito, é fraquinho”.

    A “falta de patriotismo” dos gaúchos trazia à tona uma inevitável referência histórica: a Revolução Farroupilha, que de 1835 a 1845 fez da província a República Rio-Grandense, contra o Império do Brasil. A melhor síntese do enfrentamento do estado contra a ideia de Brasil vencedor veio do escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo. Em um texto intitulado “Insensatez”, ele comentou: “Mostramos ao Zagalo que o futebol gaúcho não pode ser desprezado? E eu respondo que não mostramos ao Zagalo nada e que o futebol gaúcho tanto pode que continua desprezado. O mal do protesto passional é que suas razões se extinguem quando termina a paixão. E todas as legítimas perguntas que se poderia fazer sobre os critérios de convocação e as contradições do Zagalo serão, de agora em diante, anticlimáticas. O clímax foi o jogo de sábado”.

    Verissimo tinha razão: o protesto não surtiu efeito. Os futebolistas da “Corte” mantiveram sua atitude de desprezo em relação aos rio-grandenses.  Ainda hoje, o senso comum atribui ao futebol no Rio Grande do Sul características próprias, que o diferem do resto do país: mais virilidade que habilidade, mais força que malícia. Atributos que teriam até razões históricas, como as intempéries sulinas, conferindo ao jogador as características do gaúcho campeiro, e a influência dos vizinhos platinos, com suas virtudes “castelhanas” – vigor, audácia e bravura. Motivo de orgulho para os gaúchos, a primazia de ter o primeiro time de futebol do país – o Sport Club Rio Grande, fundado em 1900, quando Flamengo e Vasco ainda eram apenas clubes de regatas – também serviu para reforçar o estereótipo. A organização precoce do futebol naquela região seria consequência da forte presença germânica, povo já portador de sólida tradição em ginástica e esportes.

    Para tanto, também teve precocemente a influência dos vizinhos uruguaios, onde o futebol já estava bem consolidado no início do século XX, trazendo sua característica aguerrida nas disputas esportivas. Outra influência uruguaia que poucos conhecem é a presença de negros em times de futebol: já presentes em clubes populares do país vizinho, pela fronteira sulina vieram os primeiros negros a jogar em clubes brasileiros: no primeiro campeonato estadual do país, o Brasil de Pelotas foi campeão gaúcho em 1919 com jogadores negros em sua equipe, bem antes do Vasco da Gama.

    Ironicamente, o futebol mais antigo do país seria o menos brasileiro! Nesses últimos quarenta anos, entretanto, o futebol jogado no país mudou bastante, e o rigor do esquema tático tem deixado o improviso de lado. O futebol-arte, dizem, pode estar com os dias contados. Será a redenção do futebol rio-grandense?  O nosso técnico, o gauchíssimo Dunga, que o diga.

    Quanto ao herói daquela Farroupilha esportiva, seu destino não foi menos trágico do que o dos protagonistas do episódio histórico. Até então considerado um dos jogadores mais disciplinados do Brasil, depois da crise envolvendo sua convocação, Everaldo agrediu o árbitro José Faville Neto numa partida do Grêmio pelo Campeonato Brasileiro. Foi suspenso por um ano. De volta aos gramados, jogou só por alguns meses. Depois entrou para a política, candidato a uma cadeira na Assembleia Legislativa pela Arena (partido que apoiava o governo militar). Everaldo estava em campanha eleitoral quando morreu em grave acidente de automóvel, juntamente com a esposa e uma das filhas, em 27 de outubro de 1974. Em seu Rio Grande natal.


    Cesar Augusot Barcellos Guazzelli é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador na área de História Social do Futebol.

    Saiba Mais - Bibliografia: 

    AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2002.

    FRANCO JR., Hilário. A dança dos deuses: futebol, cultura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

    GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do Futebol – Dimensões Históricas e Socioculturais do Esporte das Multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.

    SILVA, Francisco Carlos Teixeira da & SANTOS, Ricardo Pinto dos (org.). Memória social dos esportes. Futebol e política: a construção de uma identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2006.