A nobre elite mercante

Antonio Carlos Jucá de Sampaio

  • Monsieur Duguay-Trouin, aproveitando a névoa da manhã, consegue enganar os defensores das fortalezas de São João e de Santa Cruz, situadas na entrada da Baía de Guanabara, e coloca-se diante do Rio de Janeiro com sua frota: 18 navios e cinco mil homens. Seu objetivo: conquistar a cidade naquele setembro de 1711. A partir daí, instala-se o pânico entre os moradores. Autoridades, oficiais e soldados portugueses fogem em poucos dias, assim como a população civil. A cidade fica praticamente deserta.

    Duguay-Trouin era um corsário do rei de França, Luís XIV, e a expedição fora financiada por comerciantes franceses. Sua missão era clara: saquear o Rio de Janeiro e dar o maior lucro possível, tanto para o rei quanto para aqueles que o haviam financiado. E ele a cumpre muito bem: saqueia igrejas, fortalezas, casas, tudo, enfim, em que houvesse algo de valor para se levar. O prejuízo é imenso: além dos saques, os cariocas são obrigados a pagar um elevado resgate pela cidade. Quando partiram, os franceses deixaram para trás uma cidade arrasada. Mas, afinal, por que os franceses atacaram o Rio de Janeiro?

    O motivo principal pode ser resumido em uma única palavra: ouro. Desde o início do século XVIII, quantidades cada vez maiores do metal amarelo eram desembarcadas no porto de Lisboa, vindas do interior de sua colônia americana. Esse ouro estimulava o comércio em Portugal e atraía a cobiça de muitos. Na América portuguesa, desde o início da mineração, o Rio de Janeiro se colocava como principal porto de escoamento do ouro. Não é à toa que Duguay-Trouin chega à cidade no momento exato em que os navios portugueses estavam prontos para retornar a Lisboa. Ironicamente, seu ataque é uma espécie de “reconhecimento internacional” da importância da praça carioca nesse valioso comércio. É o governador Luís Vahia Monteiro, alcunhado de “O Onça”, quem vai definir melhor a relação entre a cidade e a região mineradora, mais de uma década depois do ataque francês: “Esta terra é hoje um Império, donde carrega todo o tráfico da América, e descarrega todo o peso, e aviamento dos governos das Minas Gerais e São Paulo”. Ou seja, desde o início do século XVIII, o Rio vai ultrapassando lentamente a cidade de Salvador como principal porto e centro comercial da Colônia. Aos poucos, a Baía de Guanabara se torna o destino principal tanto dos navios que saem de Portugal quanto daqueles que vêm da África, trazendo os escravos que iriam, entre outras coisas, produzir mais ouro. É preciso lembrar que o principal papel do Rio era o de funcionar como um redistribuidor dos produtos que lhe vinham pelo Atlântico para outras regiões da América portuguesa, sobretudo a área mineradora.

    Todo esse crescimento comercial significava o surgimento de novas oportunidades de enriquecimento para os que se dedicavam ao comércio. E isso não apenas em Portugal, mas também na Colônia. Parte do comércio colonial era controlada por comerciantes locais, e isto tanto no comércio com a Europa como no que era feito com a África. Aqui, o domínio dos comerciantes coloniais era enorme: desde o século XVII, eram eles que controlavam o tráfico de escravos. Não é difícil perceber, assim, o que a descoberta do ouro e a colonização das chamadas “Minas Gerais” representaram para os comerciantes cariocas. Já no início do século XVIII surgiram algumas fortunas que impressionavam por seu tamanho e que tinham em comum a origem no trato mercantil.

  • Mas é verdade que não foi somente no comércio que esses homens de posse marcaram presença. Diversificando suas aplicações, eles se transformaram igualmente em grandes proprietários urbanos, e passaram a construir ou comprar as melhores residências cariocas disponíveis, além de adquirir inúmeras outras propriedades urbanas, tanto para guardar suas mercadorias quanto para alugar. E era ali na Rua Direita (atual Primeiro de Março), a principal área comercial da cidade, que estavam os imponentes sobrados, onde os grandes comerciantes se concentravam para controlar seus negócios com Portugal, Angola, Costa da Mina, Bahia, Ásia, e até mesmo com o Rio da Prata.

    Esses homens poderosos eram chamados de “homens de negócio”. Esta expressão, que hoje designa os empresários em geral, era usado na época para definir um grupo específico, o dos indivíduos que comerciavam “de mar em fora”, ou seja, que se envolviam no comércio marítimo de longa distância. Este era o comércio mais lucrativo, mas também o mais arriscado. Havia o risco de naufrágio, sempre rondando as viagens marítimas, além da ameaça dos piratas e da permanente possibilidade de a carga se deteriorar. No caso do tráfico de escravos, o grande perigo era a mortalidade durante as travessias oceânicas, que podia significar a diferença entre lucro e prejuízo numa viagem. Por fim, este era o comércio de longo prazo, em que o retorno do capital investido podia demorar dois ou três anos. Por tudo isso, eram poucos os que tinham condições de se dedicar a esse comércio por um longo tempo. Os que o conseguiam constituíam o topo do grupo mercantil.

    A atuação no comércio de longa distância garantia uma posição de poder a esses homens de negócio: eram eles que controlavam o acesso da população colonial a bens de grande valor, fossem os manufaturados europeus ou, o que é ainda mais importante numa sociedade escravista, os escravos africanos. Todos esses bens eram então repassados a outros comerciantes, para serem redistribuídos dentro da América portuguesa por meio do sistema de adiantamento, ou seja, o comprometimento do pagamento futuro, depois da venda dos produtos. Muitas vezes esses bens eram repassados para um terceiro ou mesmo para um quarto comerciante, sempre pelo o sistema de adiantamento, antes de chegar ao consumidor final, resultando em uma verdadeira corrente de endividamento por toda a América lusitana.

    O sistema de comércio interno ainda garantia aos poderosos negociantes o acesso direto ao ouro, que era então usado como pagamento das mercadorias nas regiões mineradoras. Ironicamente, o fato de os mineradores dependerem dos homens de negócio para adquirir escravos, ferramentas e diversos outros produtos fazia com que o Rio fosse um grande beneficiário da atividade mineradora, muito mais do que as próprias minas.

     


  • O fato de os homens de negócio serem os grandes destinatários do ouro na Colônia transformava-os também na grande fonte de créditos para a população colonial. No Brasil colonial e em Portugal não havia bancos. Portanto, quem precisava de dinheiro emprestado tinha que recorrer a credores privados ou a instituições como a Santa Casa da Misericórdia. No Rio de Janeiro do século XVII, a grande fonte de recursos era o Juízo de Órfãos. O juiz emprestava o dinheiro pertencente aos órfãos da cidade a quem apresentasse garantias. A razão dessa prática era a proteção do valor das heranças a serem recebidas, evitando a deterioração ou perda que bens e escravos podiam apresentar. Além disso, seu rendimento era usado para a manutenção dos próprios órfãos enquanto eles não atingissem a maioridade. Nesse período, com o fortalecimento do capital mercantil na praça carioca, os homens de negócio passam a ocupar o lugar antes destinado ao cofre dos órfãos. Serão, então, os grandes credores da sociedade colonial, emprestando dinheiro para senhores de engenho, artesãos, fazendeiros, militares, religiosos, assim como para outros negociantes. Também emprestavam recursos para o governo da capitania fluminense, o que era de grande importância quando a arrecadação fiscal falhava ou as despesas cresciam mais do que as receitas.

    Os homens de negócio investiam ainda na agricultura. Entretanto, ao contrário do que ocorria na Bahia ou ocorreria no próprio Rio de Janeiro no final do século XVIII, eles evitavam aplicar seus recursos em engenhos de açúcar, que eram, na época, as propriedades rurais mais valiosas e importantes símbolos de prestígio social. Preferiam adquirir imensas propriedades no entorno da cidade ou então no chamado Caminho Novo, que unia o Rio a Minas através do vale do Rio Paraíba do Sul. Essa recusa em se transformarem em senhores de engenho era reflexo de uma intensa disputa entre os homens de negócio e a chamada nobreza da terra. Esta era constituída dos descendentes dos conquistadores e primeiros povoadores da capitania, e desde o século XVI detinha o monopólio do poder político. Eles viam com maus olhos o surgimento de uma nova elite, formada por indivíduos quase sempre de origem humilde e que haviam enriquecido com a prática do comércio. Os nobres da terra lutavam, sobretudo, para não ter que dividir o poder político, já que, em termos econômicos, não lhes podiam fazer frente. Por sua vez, os homens de negócio se recusavam a ter um papel político subordinado. Esta luta se desenrola em momentos e em palcos diversos. A Câmara é, sem dúvida, um dos mais privilegiados cenários dessa disputa. Para a nobreza da terra, só podiam participar do jogo político pessoas de “maior qualidade”, ou seja, os descendentes daqueles que haviam conquistado a capitania aos franceses e tamoios “às custas das suas vidas e fazendas”. Por esta argumentação, pesava contra os homens de negócio não só sua origem como o fato de serem quase todos portugueses e, portanto, não fazerem parte dessas primeiras famílias fluminenses.

    A reação dessa elite mercantil a esses ataques apoiava-se em dois argumentos: o Rio de Janeiro era parte do império português e, dessa forma, qualquer leal vassalo de Sua Majestade podia servir em qualquer Câmara, desde que tivesse qualidade para isso. Em segundo lugar, afirmavam sua riqueza e a utilidade desta para a Coroa, fosse pelo aumento da arrecadação de impostos, fosse pela sua capacidade de atender com seus empréstimos às necessidades da Fazenda Real.

  • Nesta disputa, a Coroa atuava, sobretudo, como mediadora. Por um lado, colocava-se claramente ao lado dos negociantes no seu intuito de participar do poder político. Por outro, não deixava de reconhecer a importância das “melhores famílias da terra”. A estratégia não era substituir um grupo pelo outro, mas fazer com que ambos compartilhassem do poder, reconhecendo a importância crescente dessa elite mercantil não só no Rio de Janeiro, mas em todo o império português.

    É com esse apoio da Coroa que os homens de negócio acabam por se igualar socialmente à antiga nobreza. Afirmava-se, assim, nessa primeira metade do século XVIII, a consolidação do poder desse grupo no contexto da sociedade colonial. A partir daí, sua atuação, tanto política quanto econômica, iria preparar as bases de um domínio que se tornaria incontestável no final do século.


    Antonio Carlos Jucá de Sampaio é professor de História do Brasil da Universidade Federal Rio de Janeiro e autor do livro Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas (Rio de Janeiro, c.1650 – c.1750), Arquivo Nacional, 2003.