A paternidade do passado

Lucia Maria Paschoal Guimarães

  • Lisboa, 5 de outubro de 1839. Francisco Adolfo de Varnhagen decide escrever ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro oferecendo um exemplar da sua edição crítica do Roteiro do Brasil – também conhecido como Tratado descritivo do Brasil em 1587. Na carta cerimoniosa que acompanha a publicação, endereçada ao secretário do Instituto, o cônego Januário da Cunha Barbosa, o jovem letrado timidamente relata os resultados das suas primeiras experiências na pesquisa de documentos históricos. Nem de longe podia supor que a memória nacional haveria de consagrá-lo o pai da história do Brasil.

    Nascido em 17 de fevereiro de 1816, em Sorocaba, São Paulo, Francisco Adolfo era filho do engenheiro alemão, o Coronel Frederico Luís Guilherme de Varnhagen, e de Maria Flávia de Sá Magalhães, de nacionalidade portuguesa. Seu pai, um dos pioneiros da fundição de ferro no Brasil, chegara aqui em 1809, contratado para iniciar os trabalhos da fábrica de São João de Ipanema, onde permaneceu até 1821, quando resolver voltar à Europa e fixar-se com a família em Portugal.

    Francisco Adolfo fez os primeiros estudos no Colégio Militar da Luz (Lisboa), matriculando-se, em seguida, na Academia da Marinha. Alistou-se no 2º Batalhão de Artilharia e aderiu à causa do duque de Bragança - o ex-imperador d. Pedro I, que após abdicar ao trono brasileiro, seguiu para Portugal para defender os interesses de sua filha, rainha d. Maria II, na disputa com o príncipe d. Miguel pela coroa portuguesa. Promovido a oficial, ingressou na Academia de Fortificações e concluiu o curso de engenheiro militar no ano de 1834.

  • O interesse pela poesia medieval o levou a participar rodas literárias lisboetas. Aproximou-se do escritor e historiador português Alexandre Herculano (1810-1877) e do Cardeal D. Francisco de São Luís, o Cardeal Saraiva, o que lhe valeu uma recomendação para ter acesso aos arquivos da Torre do Tombo. Lá, Varnhagen iniciou suas atividades na pesquisa de documentos antigos e encontrou um tesouro praticamente intocado que soube explorar como ninguém. Basta lembrar, dentre outras inúmeras descobertas, a revelação da identidade do autor (Gabriel Soares de Sousa) do já mencionado Roteiro do Brasil, a principal descrição dos domínios portugueses na América no século XVI, o Tratado descritivo do Brasil em 1587, trabalho que lhe abriu as portas da Academia de Ciências de Lisboa (1838).  Desvendou, também, o mistério que envolvia os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, ao encontrar seu o túmulo no convento da Graça, em Santarém, em 1838.

    Apesar da notoriedade que seus estudos vinham alcançando em Portugal e das atividades de engenheiro militar, em 1840, decidiu viajar para a pátria de nascimento, a fim de requerer a nacionalidade brasileira. Por essa mesma ocasião, elegeu-se sócio correspondente do Instituto Histórico. Fundado em 1838, o Instituto iniciara um programa de investigação nos arquivos europeus, financiado pelo governo imperial, a propósito de examinar, coletar e extrair cópias de documentos e diplomas que pudessem interessar à escrita da história pátria. Porém, o primeiro pesquisador comissionado, o diplomata Dr. José Maria do Amaral, não pode dar conta das tarefas que lhe foram confiadas. Para substituí-lo, foi indicado o nome de Varnhagen, de reconhecida experiência no manuseio dos papéis da Torre do Tombo, e que também desejava ingressar na carreira diplomática. Ele desempenhou com maestria suas primeiras missões nos arquivos ibéricos, levantando a documentação relativa aos tratados de limites da América Portuguesa.

  • De volta ao Rio de Janeiro, em 1851, a chamado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, passou a freqüentar com assiduidade as sessões do Instituto Histórico, do qual se tornou primeiro-secretário. Diligente e erudito, organizou a biblioteca e o rico acervo documental da instituição. De quebra, conquistou a simpatia do imperador d. Pedro II, o protetor daquele reduto letrado, o que lhe possibilitou pleitear postos, condecorações e honrarias. Nomeado para a legação do Brasil na Espanha (1852-1858), aproveitou a oportunidade e estendeu suas investigações aos arquivos de Amsterdã, de Paris, de Florença e Roma. Data dessa temporada na Europa, o lançamento da História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal (Madri, 1854-1857). Promovido a ministro residente, representou a chancelaria imperial em diversos países da América do Sul (1859 e 1867).

    Foi durante sua permanência no Chile que Varnhagen se casou, constituindo família com uma jovem da sociedade local. O brasileiro circulou pelos maiores centros culturais da Europa e das Américas, fez parte de importantes associações científicas internacionais e soube conciliar os deveres da carreira diplomática com o ofício de historiador. Para ele, os lazeres e o glamour da chancelaria pareciam secundários. A diplomacia foi, antes, um meio que lhe permitiu o acesso a bibliotecas e arquivos. Por sinal, ele inaugurava uma operosa e bem sucedida linhagem de historiadores-diplomatas, a qual se acrescentam os nomes de Joaquim Nabuco, do Barão de Rio Branco, de Oliveira Lima, de Macedo Soares e, nos dias atuais, de Evaldo Cabral de Mello e de Alberto da Costa e Silva.

    Morto em Viena, em 1878, Varnhagen foi sepultado no Chile por exigência da esposa. Um século mais tarde, seus despojos foram trasladados para Sorocaba, onde hoje se encontram, atendendo à vontade expressa em testamento. Deixou uma extensa e variada bibliografia, composta por dezenas de títulos, compreendendo livros, opúsculos, artigos, monografias e memórias, com estudos de história, de literatura, de etnografia e de filologia. É creditado a ele, o reconhecimento e denominação do estilo manuelino, apontado como a forma arquitetônica que surgiu em Portugal no final do século XV e floresceu durante o reinado de d. Manuel I (1469-1521). Dentre suas publicações mais conhecidas, além da História geral do Brasil, há que se destacar o Florilégio da poesia brasileira ( 1850-1853), a História das lutas contra os holandeses (1871) e a História da independência do Brasil, concluída em 1875, mas que permaneceu inédita até 1916, quando os originais foram descobertos por acaso, em meio aos papéis do arquivo do barão do Rio Branco.

  • Sua obra máxima foi, sem dúvida, a História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal, trabalho de fôlego, que contrastava com a escassa produção histórica nacional da época. De fato, a obra pretendia não apenas reconstituir o passado do país recém independente, dando-lhe unidade e coerência, mas também concorrer para o fortalecimento das instituições monárquicas. É bem verdade que o livro foi recebido com frieza no Brasil, devido ao tratamento pouco simpático dispensado aos índios, embora tenha merecido elogios dos maiores brasilianistas da época, o bibliotecário francês Ferdinand Denis (1798-1874), e o naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius (1794 - 1868). No âmbito do Instituto Histórico, onde prevalecia uma visão romântica de viés indianista das origens da Nação, recebeu críticas do Cônego Fernandes Pinheiro, de João Francisco Lisboa e de Gonçalves de Magalhães, sendo que os dois últimos sustentaram com Varnhagen um acalorado debate. Aliás, o imperador d. Pedro II parecia estimular a discussão, pois nobilitou Gonçalves de Magalhães com o título de barão e depois visconde do Araguaia, à propósito do seu indigenismo, enquanto concedeu a Varnhagen a mercê de barão e mais tarde de visconde de Porto Seguro, numa alusão ao primeiro ponto do litoral brasileiro alcançado pelos portugueses. Vaidoso, na arena acadêmica o sorocabano costumava pôr de lado a proverbial cortesia de diplomata. Convertia-se num polemista intransigente, incapaz de absorver qualquer apreciação crítica.

    Mas o erudito historiador-diplomata não se dedicava apenas aos tempos pretéritos e às escaramuças intelectuais. Preocupava-se com o presente e o futuro. Preparou numerosos pareceres, relatórios e informes para a chancelaria de d. Pedro II, sobretudo no que dizia respeito às negociações de limites do Império com as repúblicas hispano-americanas e as Guianas. Costumava afirmar que os políticos da Corte precisavam estar atentos às demandas nacionais e perder “o mau hábito de traduzir leis e a citar a Inglaterra e a macaquear os Estados Unidos”. Escreveu e publicou o Memorial Orgânico (1849-1850), em que identifica os principais problemas brasileiros da época, propondo uma série de iniciativas políticas e administrativas de grande alcance para Estado brasileiro, inclusive uma nova divisão territorial e a mudança da capital para o interior. Como complemento ao Memorial, ofereceu à Câmara dos Deputados, em 1856, o projeto de uma lei que propunha o estabelecimento do imposto territorial, a montagem de um cadastro imobiliário rural, bem como a concessão de incentivos à imigração e à colonização de terras devolutas.

  • A idéia de deslocar a sede do governo para o interior já havia sido aventada por Hipólito da Costa (1774-1823) e por José Bonifácio (1763-1838). Contudo, Varnhagen aperfeiçoou a proposta, fornecendo argumentos mais precisos. Os conhecimentos acumulados no estudo de antigos mapas do período colonial o levaram a inferir que o espaço ideal para abrigar a futura capital localizava-se entre três grandes vales – do Amazonas, do Prata e do São Francisco, nos chapadões do planalto de Goiás, vizinhos ao triângulo formado pelas lagoas Formosa, Feia e Mestre d’Armas: “É nessa paragem bastante central e elevada, donde partem tantas veias e artérias que vão circular por todo o corpo do Estado, que imaginamos estar o seu verdadeiro coração; é ai que julgamos deve fixar-se a sede do governo.”

    Para verificar in loccu suas deduções de homem de gabinete, licenciou-se das funções que desempenhava em Viena - onde assumira, em 1868, a chefia da legação brasileira no Império Austro-Húngaro - e empreendeu uma última viagem ao Brasil em 1876. Aos sessenta e um anos de idade, realizou, com recursos próprios, uma penosa excursão a cavalo até a província de Goiás, passando por São Paulo, Minas Gerais e Bahia, percorrendo antigas estradas e trilhas abertas pelos bandeirantes. Constatado o que pretendia, iniciou uma vigorosa campanha na imprensa em favor da interiorização da capital do Império. De volta ao posto diplomático no Império Austro-Húngaro, publicou, pouco antes de falecer, um livreto de 32 páginas intitulado A questão da capital: marítima ou no interior? (1877), no qual reuniu todas as informações coletadas e argumentos de que necessitava para reforçar seus pontos de vista. Sugeriu, ainda, que se começasse a fazer convergir para o local determinado as estradas de ferro de d. Pedro II (depois Central do Brasil) e da Companhia Mogiana. Delineava, assim, o caminho que — de fato — foi seguido, 90 anos mais tarde, pela ferrovia para Brasília.

  • Após a queda do regime monárquico, a proposta de Varnhagen reapareceria na Constituição da República (1891). O artigo 3º das Disposições Transitórias reservava para o domínio da União, no planalto central de Goiás, uma área de 14.400 km2, para a sede do governo federal. Este território foi demarcado pela Comissão Exploradora do Planalto Central, designada pelo presidente Floriano Peixoto, chefiada pelo engenheiro belga Luís Cruls (1848-1908), diretor do Observatório Astronômico do Rio de Janeiro, entre 1892 e 1895.  A Missão Cruls, como ficou conhecida, seguiu a trilha percorrida por Varnhagen, dirigindo-se diretamente ao sítio por ele apontado. Dissolvida a Comissão, a questão da mudança da capital só seria retomada pelas autoridades anos mais tarde, em cumprimento ao disposto na Constituição de 1946.  Novas missões demarcadoras se sucederam e a matéria arrastou-se no Congresso por mais um longo período. De qualquer modo, a última comissão, denominada de Comissão de Localização da Nova Capital, em 1955, optou por uma área que correspondia à indicação original de Varnhagen, embora de menor extensão do que a estimada pelo sorocabano.

    É inquestionável que Francisco Adolfo de Varnhagen foi o maior historiador de sua época, pela extensão da obra, dos fatos que revelou, das fontes documentais que descobriu, pela publicação de testemunhos inéditos, enfim, pelo seu enorme esforço e determinação. Contudo, a memória nacional que o reconhece como o pai da história do Brasil, ainda lhe deve um último tributo: o pioneirismo do plano da transferência da capital para as terras do planalto central. Sim, porque se a construção de Brasília é fruto da vontade política do presidente Juscelino Kubistcheck, do urbanismo arrojado de Lúcio Costa e do traço modernista da arquitetura de Oscar Niemeyer, a esses nomes cabe acrescentar o de Varnhagen, quem primeiro vislumbrou a paragem onde hoje se ergue a sede da República.


    Lucia Maria Paschoal Guimarães é professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), sócia honorária do IHGB e coordenadora, junto com Raquel Glezer, do projeto “Francisco Adolfo de Varnhagen”, que integra a Coleção Memória do Saber (CNPq).