A pauladas

Rafaella Bettamio

  • Acima, ofício apresentado à Câmara Municipal da Corte sobre as despesas com a matança de cachorros na cidade. Mais do que o extermínio dos animais, os governantes desejavam uma solução barata para o problema da raiva.“Vinte e seis cães: 2.800 réis; paus para matança: 480 réis; vinte e oito cães: 2.800 réis”. As despesas foram apresentadas à Câmara Municipal da Corte em 20 de maio de 1851. Longe de espantar alguém, os itens dessa prestação de contas eram assunto corriqueiro para o poder público. A matança de cães à paulada já foi prática comum e institucionalizada no Rio de Janeiro.

    O “Ofício remetendo a conta das despesas feitas com a matança de cães, na freguesia do Sacramento” foi encaminhado por Bernardino José de Souza, então fiscal das freguesias da Glória e do Sacramento, região que abrangia grande parte do atual centro da cidade do Rio de Janeiro. Pertencente ao Fundo Câmara Municipal da Corte, este documento pode ser consultado na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

    Encarados como uma ameaça de proliferação da raiva, doença fatal contagiosa que acomete os mamíferos e é transmitida por meio da saliva do animal infectado, os cães que fossem flagrados na rua poderiam ser surpreendidos pela “carrocinha”. Mesmo aqueles com donos e coleira. Não interessava à Câmara Municipal da Corte quais seriam os meios de extermínio, o importante era “limpar” esses animais do espaço público, de preferência barateando o serviço. Matar a paulada era talvez a solução mais barata possível. E, portanto, a mais atraente.

    Mas a econômica medida era sangrenta demais para boa parte da população: “houve matança de cães na segunda-feira, e que a Ilm.ª [Câmara Municipal da Corte] com pouca ou nenhuma delicadeza decretou essa barbaridade para ser posta em prática por meia dúzia de negros esfarrapados, munidos de grandes varapaus, acompanhados da Ilustre caterva de guardas fiscais, que ordenavam aos negros, mesmo em presença dos próprios donos dos animais (tendo alguma coleira), que o matassem e a nada atendessem. (...) se há quem ordene que sejam mortos a pau e não com bolas, quem quer que é, gosta bem de um cacete!... Os boticários hão de zangar-se contra a ordem! Principalmente se as bolas estavam já feitas e roeram a corda. Tudo isto são economias para a Ilustríssima [Câmara]; e vão se cometendo barbaridades!!!” – protestava o Periódico dos Pobres, publicado em 1º de maio daquele ano. As “bolas” mencionadas seriam venenos elaborados por “boticários” – mais caros do que paus, certamente, mas bem menos cruéis.

    O desconforto causado pelas mortes à paulada levou a Câmara a proibir, em setembro do mesmo ano, essa forma de extermínio de cães. A partir de então, ficou estipulado que a matança passaria a ser executada por meio da ingestão de estricnina, veneno hoje proibido em muitos países, inclusive no Brasil.

    Ainda assim, os vestígios dos extermínios dos cães deixavam rastros pela cidade, pois os corpos dos animais demoravam a ser recolhidos, remetendo a uma violência da qual a população preferia não se dar conta. Em dezembro, o Diário do Rio de Janeiro noticiou que o presidente da Câmara Municipal da Corte havia solicitado aos fiscais das freguesias: “sempre que se proceder a matança de cães, façam recolher logo de madrugada os que tiveram sido mortos, para que não suceda o que ainda hoje teve lugar de serem já nove horas do dia e ainda jazerem alguns dos que haviam sido mortos pelo caminho do Catete e Glória”.

    É curioso perceber que as primeiras leis relacionadas à proteção desses animais se concentravam na proibição de maus-tratos em público. A verdadeira preocupação talvez não fosse o sofrimento causado ao animal, mas a aparência social degradante daquela violência. Façam o que tiver de ser feito, mas longe da minha vista. Situação semelhante à denunciada pelos atuais defensores dos direitos animais, que fazem questão de levar a público os horrores vividos nos matadouros e laboratórios.

     
    Seja como for, em pouco tempo os brasileiros acompanhariam o restante da civilização ocidental e começariam a ver o cão como seu amigo, ou até mesmo parente. Ainda antes da década de 1850, Charles Darwin já dizia em seu diário: “O homem, em sua arrogância, acredita ser uma grande obra, merecedora da intermediação de uma divindade. É mais humilde e, penso eu, mais verdadeiro considerar que foi criado a partir dos animais”. O crescimento dos movimentos em defesa dos animais até os dias de hoje demonstra que, embora a espécie humana não prime pela humildade, às vezes acaba se curvando ao conhecimento e ao bom senso. A convivência com os animais, quem diria, nos ensina a ser menos bárbaros.