À porta do céu

Mariza Guerra de Andrade

  • Alguns brasileiros conhecem o Caraça hoje por seu rico ambiente natural, situado em um vale magnífico, entre as serras altas e frias do Espinhaço mineiro com vegetação de mata atlântica, cachoeiras e uma importante fauna. Mas não são muitos os que sabem que, durante todo o século XIX, foi desenvolvida naquele local uma nova experiência de educação.

    Em 1820, naquele vale ou na “serra inabitável” – como diziam os viajantes estrangeiros que chegavam a Minas – iria começar a construção de um projeto educacional pioneiro, fortemente humanístico e inspirado na Antiguidade clássica. Seria conduzido por missionários ultramontanos vindos de Portugal, de tradição rural e inspiração austera, obcecados pela idéia da conversão. Eram os padres vicentinos e lazaristas da Congregação da Missão. O Colégio do Caraça, mais tarde equiparado ao Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, seria, assim, a primeira instituição privada das humanidades que as Minas do Brasil pré-independente conheceram.

    No século XIX, Minas gestava sua elite dirigente, e a criação de um colégio já era uma necessidade para sua formação. Seria um colégio exemplar, a sementeira viva do poder: uma instituição nos moldes franceses, que recruta alunos em determinados segmentos sociais; proporciona um tipo particular de ensino centrado nas humanidades clássicas, preparando-os eventualmente para a academia; com hierarquia, grade curricular e arquitetura definidas para esse fim e, sobretudo, com notável dimensão preparatória para a vida pública – a carreira eclesiástica ou a magistratura.

    O Colégio do Caraça teve longa duração, de 1820 a 1912, apesar de um período de interrupção (1842-1856) e das constantes crises que rondaram sua trajetória. Foi um empreendimento simbolicamente próspero e financeiramente viável, pois em sua fase áurea (entre as décadas de 1870 e 1890) chegou a ter mais de 300 alunos (ao contrário da média geral de 60 alunos nos demais colégios), que pagavam caras mensalidades, além de várias outras despesas, o que configurava um alto investimento dos seus pais. Em média, o custo anual de um aluno interno nos anos 1870 era de 680$000 (seiscentos e oitenta mil-réis). Para se ter uma idéia desse montante, os serviços médicos de atendimento anual a 100 alunos pensionistas, pagos pela instituição, eram no valor de 720$000 em 1873. O colégio deveria atender os herdeiros das elites constituídas de fazendeiros – com seus negócios diversificados em forjas, comércio, fabricação do couro, compra de escravos, construção de estradas – que tinham alguma idéia da importância, também política, da instrução.

  • Era da sede dos padres vicentinos em Lisboa que vinham as orientações para os padres do Caraça, à moda das teses do seu fundador, Vicente de Paulo: “Não sejamos vanguardeiros, mas o grosso da tropa” – amarga referência aos imbatíveis jesuítas, mas também certa desforra sobre aqueles que não tiveram permissão de se instalar nas prósperas Minas. Os lazaristas chegaram com o lastro de antigos amigos dos reis de Bragança e receberam a doação das terras. Chegaram em meio a um clero secular – considerado insubordinado – dispostos a uma audaciosa programação missionária e à tremenda empreitada de fundar um colégio em um tempo de evidente organização do Estado nas esferas nacional e provincial, ou seja, no período em que se desenvolvia o embrião de uma sociedade formalmente liberta do seu estatuto colonial.

    Mas nem bem os padres do Caraça se instalaram na serra, ruidosos ataques surgiram na imprensa local (O Universal, de Ouro Preto) e na Assembléia Provincial, revelando o clima de disputa que animava a região. O ambiente das Minas, como sabem os historiadores, era e sempre foi propenso às gritas. Há farta documentação para comprovar o gosto pela controvérsia, típica do ambiente citadino, imantado de conversas (e das boas) nessa região mineira complexa, formada por uma rede de caminhos que se expandiu, favorecendo o contato entre arraiais e vilas, e também uma margem social de refluxo e incubação necessária à expressão criadora e ao pensamento.

    A passagem do aluno pelo Colégio do Caraça não significava a preparação para uma especialização profissional futura. O curso era voltado para os exames de acesso às academias. Contudo, o seu valor deve ser entendido pela dimensão preparatória para a vida pública – tratava-se de educar aqueles que não eram como todos, mas como poucos, daí seu caráter socialmente classificador.

    O mestre e os grandes nomes do cânone clássico, ou do passado, constituíam o modelo reverenciado e a parte essencial da mentalidade pedagógica. O princípio do enciclopedismo estava assegurado. O currículo era grande, de vinte a vinte e cinco disciplinas. Só a partir da década de 1880 são introduzidas mudanças que revelam certo esforço para acompanhar as transformações na sociedade brasileira. Assim, há a introdução de línguas vivas, como o inglês; a presença das ciências naturais em todos os anos; menos história sagrada e mais história política; o realce da química, ministrada agora com práticas de experimentação (com a montagem do “gabinete de química”), avanços no chamado espírito geométrico – ainda que continuasse a imperar aquela feição crítica ou aquele zelo sentimental pela literatura, pelo discurso, que os lazaristas, sobretudo franceses, chamavam de “ócio meditativo”.

  • “Sem latim”, dizia-se, não se passava de alguém “que se faz de inteligente” e não seria possível avançar no curso. Como o ensino era tributário do humanismo clássico, imperava o latim, a fonte do saber, usado como ornamento do discurso e uma das exigências saudáveis do padrão culto da língua, sobretudo para o trânsito social.

    Grande valor também era atribuído à retórica, disciplina do campo literário, de caráter formativo. Essa posse da palavra e do discurso constituía uma marca forte da “distinção social”, tal como a posse de escravos, bens e terras. No Caraça – herdeiro do barroco português meio tardio – a disciplina era prestigiadíssima. Os alunos caracences foram, assim, filhos da retórica, apesar de o século XIX europeu já condená-la em parte.

    As fábulas eram lidas, traduzidas, copiadas e decoradas. Há dezenas de exemplares de fábulas com seus arremates morais, nas versões em latim ou em português, nas estantes do Caraça, das décadas de 1870 e 1880, com anotações como: “Muitas vezes o mais útil é o que se despreza”, “O que te adula te vende”, “É muito falível a opinião do vulgo”, “Contenta-te com a tua sorte”.

    Há muito mais a comentar sobre a educação dada no Caraça, mas é preciso dizer que aquele edifício de saberes estava envolto em uma pirâmide de olhares, sob rígido controle disciplinar, e amarrado a uma visão monolítica de cultura, vista como mera soma de saberes inventariados e alicerçados na Antiguidade.

  • A biblioteca teve cerca de 30 mil volumes (até o incêndio, involuntário, ocorrido em 1968). Estava entre as duas melhores e “muito gabadas” bibliotecas de Minas Gerais, tendo sido formada com maior vigor após 1860. Em lastimável estado de conservação, a biblioteca aguarda ainda hoje projeto sério e competente capaz de recuperá-la. Compõe-se de livros centenários, alguns do século XVII, muitos do século XVIII e, na maior parte, do século XIX, entre bíblias, memórias, literatura, obras raras e “curiosas”, sendo maioria as de cunho religioso.

    As freqüentes intervenções sofridas por esses livros, com anotações à margem e digressões, sugerem seu uso intenso por professores e alunos no tempo do colégio. É o caso do padre latinista, professor Pedro Boss, que anotou em um dicionário de francês-português mais de 10 mil expressões portuguesas retiradas de autores clássicos.

    O gaúcho Artur de Oliveira, matriculado no Colégio do Caraça em 1868, aos 16 anos, em carta de lá ao pai, diz-se impressionado com o “ninho de religião e ciência” e com seus professores lingüistas: “[...] há um que sabe 10 línguas muito bem, outro que escreve a história do Brasil em verso latino, outros se aplicam no estudo das ciências naturais [...]; fiquei pasmo quando entrei na biblioteca do Caraça, há livros que talvez não exista segundo exemplar no Brasil”. O jovem tornou-se boêmio, jornalista e viajador, e morreu de tísica aos 31 anos, mas viveu pelo gesto de Machado de Assis, que o indicou patrono da cadeira da Academia Brasileira de Letras ocupada hoje por Carlos Heitor Cony. No curto período em que passou pelo Caraça, tornou-se um estudante rebelde e chamava o colégio de “cárcere insensível e mudo”. Acabou expulso dali para outra vida que não era a prometida por aquela educação, mas que era a que ele, provavelmente, sonhara: a sociedade das letras, das ruas e das tabernas da cidade.

    Naquele sítio paradisíaco – como anotaram Spix e Martius na sua Viagem ao Brasil –, no vale cercado por um portal elevado de cadeias montanhosas recobertas por uma floresta nada regular e de intensa luminosidade, estava em curso uma geografia monástica e masculina. À “Porta do Céu” se estava exilado e isolado e, por isso mesmo, em certo sentido, se estaria também livre. Era essa a idéia de educação, que dependia dessa pedagogia e desse cenário afastado para se realizar. Os homens ali reunidos diziam desprezar as seduções do mundo.

  • Some-se a isso outras características que podem ser percebidas nos testemunhos e documentos: o universalismo do discurso clássico somado às aspirações da educação; a apropriação privada dos interesses de dominação; uma congregação de missionários que lidava com o mundo, mas que parecia ter medo de lhe abrir suas portas; o tema do carpe diem negado ou da fruição reprimida; os sacrifícios e castigos (também corporais) para a salvação da alma; a utopia do passado, pois é para o passado de glórias que os alunos deveriam ser arremessados, ao encontro dos modelos do homem exemplar ou do príncipe perfeito, senhores deste e do outro mundo, e, finalmente, o enxerto das paixões ou das expressões e máximas latinas na língua portuguesa para garantir a boa eloqüência nos púlpitos e nas tribunas, fazendo, enfim, das palavras memorizadas e repetidas, o ato da celebração, o espetáculo!

    Tudo isso num tempo meticulosamente esquadrinhado, em que todos os dias eram como todos os dias, em silêncio e sem ociosidade, “mãe de todos os vícios”. O Regulamento da Casa era um ajuntamento de regras alteradas em função de ocorrências e situações do cotidiano, mas que, no fundamental, orientava-se pela norma de que “castigar é exercitar”. O jovem era tido como suspeito, deveria ser adestrado e deveria estar impedido, como se fosse possível, do contato humano ou das “amizades particulares” – uma norma tipicamente conventual. Até os recreios, fora exceções, eram feitos em silêncio.

    Mas é claro que aquela comunidade masculina naquele topo geográfico isolado e disciplinador tinha lá seus subterrâneos, contradições, conflitos de toda ordem, que derrubam a imagem ou a memória impressionantemente recomposta sobre o inquebrantável “colégio das batinas negras de Minas”. Havia algum “barulho” e vitalidade juvenis em confronto com aquele ambiente de confinamento e de supressão dos desejos humanos. As divergências internas espalhavam-se em atritos entre a política civil e a eclesiástica, e que outros, que não os ricos, foram influenciados por aquela formação – sem aqui estarmos nos referindo à “boa caridade” na admissão de bolsistas ou alunos pobres, uma evidente minoria não só no Caraça como em outros colégios da época.

    Se é verdade, como afirmou o crítico literário José Maria Cançado, que o padrão seguido e o esforço empenhado “tenham sido um pouco elemento de formação do papagaio do Brasil, o da repetição gaiata e fora de lugar de modelos, de firmamentos de cultura que se pode auscultar em boa parte do perfil histórico e cultural dos donos da voz e dos privilégios em nosso país”, o Caraça também foi capaz de estender os limites do seu projeto educativo humanista, ainda que pensado inicialmente como um presente para poucos merecedores. Desejadamente elitista, exilado ou fora do seu solo, esse projeto imbricou-se também na paisagem (já) cultural das Minas, amadureceu e deu frutos com um acervo humanístico dos melhores: idéias, palavras, possibilidades comoventemente levadas àquelas alturas por meio dos casuás (balaios colocados no dorso dos burros) para dar corpo a um ensino com um alvo preciso: a formação do homem educado. E foi o que fez principalmente o Colégio do Caraça, ao formar uma geração de “sabor clássico”, em geral conservadora, para atuar politicamente nas carreiras e cargos do Império e da República.

  • A educação caracense reelaborou uma tradição de ensino europeu em que os colégios eram, por excelência, os espaços reclusos para o adestramento da infância, dos pequenos notáveis (já nascidos assim!) que, arremessados do exílio escolar para o mundo adulto, seriam formados, no corpo e no espírito, para se tornarem futuros dirigentes. Essa era a sua pretensão: construir o homem com seu atributo de ser o “ser da razão”, um ponto central do discurso pedagógico do tempo. Desse homem exigia-se mais do que saber latim, citar os clássicos, recitar ladainhas, declamar. Seria preciso o savoir-vivre, síntese de pormenores e sutilezas só aprendidos e apreendidos por meio da educação e que aprimoraria a razão. Mas era preciso ainda mais: abrir as janelas da ilustração, por onde se respiraria a “verdadeira” herança espiritual que, no curso da corrente errante da mineração, por vezes esteve à beira do caos. Seria necessário avançar com essa herança humanista, cosmopolita e ordenadora. Por isso é que desse homem educado se exigia a elegância civil, a polidez, a sagacidade, o ar cônscio e aparentemente compassivo, a sensibilidade para os engenhos de espírito, o afastamento do vulgo e do vulgar – atributos indispensáveis para a conformação de um perfil que já estava desenhado, cabendo aos mecanismos pedagógicos e disciplinares a interiorização do modelo. 

    Paradoxalmente, se aquela tradição educacional inspirou a mentalidade da elite, inspirou também muitos outros a quem era negado o direito de ser educado. Assim, o espectro que se evocara no Caraça foi de alguma forma truncado – não só as elites antigas, mas também as novas, as “do espírito”, puderam ganhar a “boa consciência” da ilustração. O “esforço” cultural em Minas Gerais – soluções construtivas e arquitetônicas inovadoras, música de qualidade, rostos mulatos pintados nos céus das igrejas, poemas, narrativas, o receber na boa mesa, a excelência da cachaça – veio se construindo no interior de uma sociedade muito tensa e conflitada. Tudo isso em um ambiente cultural muito complexo e singular, no qual o Colégio do Caraça, imbricado a ele e às oscilações do tempo, construiu sua trajetória e sua memória.

    Conhecer e tentar elucidar alguns dos pontos sobre o papel do Caraça na sociedade mineira oitocentista é ir também elucidando várias das mais constitutivas e intrincadas contradições da formação social, cultural e educacional do Brasil.

    Mariza Guerra de Andrade é doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais e autora de A Educação Exilada – Colégio do Caraça (Belo Horizonte: Autêntica, 2000).