Ele estava lá, escondido atrás de outros livros, um pouco amassado e bastante envelhecido. Distante do espaço em que deveria estar pela catalogação bibliográfica, foi por acaso que o encontrei – já que, numa biblioteca, um livro fora de ordem é quase um livro perdido. O ano era certamente 2004, mas a memória falha em saber qual o mês específico, por volta de abril ou maio. Começava ali meu contato com a primeira edição de Casa-grande & senzala, publicado em 1933 pela editora Maia & Schimidt Ltda. Do momento deste primeiro encontro até a defesa de minha tese de doutorado, em 2008, estive intimamente envolvido com o livro de estreia do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre.
A releitura da obra, agora em sua edição “original”, ocasionou um considerável descaminho na pesquisa. Pensada inicialmente como uma investigação sobre a forma como os historiadores provam seus argumentos, passei a considerar que, no fundo, mais do que o tema da prova, me interessava a legitimidade do discurso historiográfico. Se o historiador escreve procurando representar fidedignamente o passado, o que torna legítima esta representação? – eis a pergunta que eu me colocava. E privilegiei o imponente livro de Freyre como matéria principal da minha interpretação, dada a forma singular como ele constrói sua representação do processo histórico nacional.
Lá pelas tantas, novo imprevisto: apareceu Euclides da Cunha, ou melhor, reapareceu o monumento Os Sertões, publicado por ele em 1902 sobre as agruras vividas pelo exército republicano e vivenciadas de forma ainda mais trágica pelos “jagunços” do sertão baiano nos anos finais do século XIX. Funcionando na tese como um foco de luz que, ao iluminar melhor a feitura de CG&S, lançava claridade sobre si mesmo, Os sertões me permitiu ver com maior pertinência os mecanismos utilizados por Gilberto Freyre para, nos dizeres de Darcy Ribeiro, “engambelar o leitor”. Da escrita agreste de Euclides (Joaquim Nabuco dizia que ele, ao invés de uma pena, usava um cipó para escrever), com suas cenas de acachapante e, por vezes, doída beleza, eu passava sem grandes desvios à ilusória displicência descritiva de Freyre, narrando como que vendo diante dos olhos seus senhores na rede cedendo às pressões fisiológicas do corpo, suas índias encantadas banhando-se nuas em rios ou de pernas abertas para gulosos caraíbas, suas mucamas dengosas amaciando a comida da sinhá de dia, deitando-se na mesma rede do sinhô de noite.
Lidando com dois dos maiores autores da nossa tradição intelectual, tentando manter o rigor analítico diante de duas formas de escrita que encantam e, por vezes, descaminham o leitor, pude notar que os antagonismos e as contradições de nossa realidade social também se manifestam de forma contundente nas suas modalidades de representação. Longe de ser um demérito, eis aí um problema instigante para a pesquisa sobre nossa história.
Fernando Nicolazziprofessor da UFRGS e autor de Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio. Sobre Casa-grande & senzalae a representação do passado (Editora da Unesp, 2011).
A rede e o sertão
Fernando Nicolazzi