A reforma que não veio

Mario Grynszpan

  • Você já deve ter visto estas imagens: em tomadas aéreas, extensas regiões cobertas por plantações são percorridas por grandes máquinas, enquanto ouvimos uma narrativa sobre a força da agricultura brasileira, sua importância para a economia e seu caráter moderno, com uso intensivo de tecnologia e altos níveis de produtividade. A mensagem final remete ao reconhecimento do Brasil como grande exportador de commodities – palavra que já se tornou familiar – matérias-primas e produtos semimanufaturados, como café, açúcar, suco de laranja, soja, celulose e carnes.

    Vemos muitas máquinas, mas pouca gente. A mecanização da agricultura reduz a necessidade de força de trabalho humana nas diferentes etapas do processo produtivo. Cerca de 1 milhão de pessoas deixaram de trabalhar em ocupações agrícolas apenas entre 2009 e 2011, segundo o IBGE. E a população residente em área rural também se retrai, representando hoje cerca de 15% do total do país. O campo perde população para as cidades e a agricultura perde mão de obra para outros setores da economia.

    Mesmo que a urbanização seja um fenômeno generalizado, suas formas, dimensões, ritmos e efeitos não são sempre os mesmos. No caso brasileiro, foi apenas na década de 1960 que a população urbana superou a rural. Pelo Censo de 1940, mais de 68% dos habitantes viviam no campo. No de 1980, já se via o inverso: cerca de 68% nas cidades. Ou seja: no curto espaço de 40 anos a população brasileira passou por uma inversão radical, com milhões de pessoas abandonando o campo em direção a cidades – e muitas se instalando de forma precária em favelas e periferias.

    Mas migrar não é a possibilidade única nem natural de reação a uma deterioração das condições de existência no campo. Outras reações são possíveis, entre as quais a resistência pela via da mobilização política, buscando anular as causas da saída e melhorar as condições de vida nas próprias regiões de origem. Foi o que ocorreu em vários estados do Brasil, a partir principalmente da segunda metade dos anos 1940 – com décadas de atraso, portanto, em relação às organizações operárias, aos sindicatos e às mobilizações grevistas que agitaram o ambiente urbano desde o início do século.

    Mobilizações e conflitos envolvendo populações rurais já haviam acontecido em períodos anteriores, mas foram ocorrências isoladas, sem efeitos políticos de longo prazo. Quando eclodiram, foram largamente interpretados de modo negativo. O caso mais notório foi o do arraial de Canudos, no interior da Bahia, criado em 1893 e habitado pelo líder religioso Antônio Conselheiro e milhares de seguidores. Acabou destruído em outubro de 1897 por tropas militares do presidente Prudente de Morais (1841-1902), depois de resistir a outras investidas.

    Nos anos 1950 foram criadas inúmeras entidades de representação de trabalhadores rurais, de âmbito local e nacional. De início tinham caráter civil, como ligas, associações e a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab). No começo da década seguinte vieram os sindicatos, as federações estaduais e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Lutavam pela reforma agrária e pela garantia dos seus direitos, o que significava buscar a extensão da cidadania ao campo, o equivalente a limitar o arbítrio e a violência dos grandes proprietários, submetendo-os ao poder maior, impessoal, das leis e da Justiça.

    Não que os trabalhadores rurais fossem de fato excluídos dos direitos de cidadania, nem que as leis isentassem os proprietários do seu cumprimento. Mas na prática, no interior dos domínios rurais, os vínculos dos fazendeiros com as redes de poder impediam que as leis fossem fiscalizadas e que houvesse punição aos transgressores. À diferença do que se via nas progressivas conquistas dos trabalhadores urbanos, no campo persistiam os privilégios dos proprietários, com a Justiça e as forças policiais a favorecê-los. Essa situação vinha de longa data, remontando à nossa colonização, com a formação de grandes domínios com numerosa mão de obra, de início escrava, sob o controle de senhores, unidos por relações familiares, de amizade ou de compadrio àqueles que exerciam, em seus diferentes níveis, a política e a administração públicas.

    Ainda assim, as organizações apelavam ao Direito, buscando conter a violência, barrar expulsões de trabalhadores das fazendas, cobrar indenizações. As lutas visavam também à garantia de direitos trabalhistas e à criação de uma legislação que contemplasse as especificidades do trabalho rural, o que só ocorreria com a aprovação, pelo Congresso Nacional, do Estatuto do Trabalhador Rural, em 2 de março de 1963.

    O Estatuto foi aprovado em um contexto de forte mobilização pela realização de uma reforma agrária, com a desapropriação das grandes propriedades – os chamados latifúndios – e a sua redistribuição em lotes menores entre os trabalhadores rurais. Desde os anos 1950 vinha se generalizando o diagnóstico de que o Brasil vivia duas realidades: a das cidades – que se modernizavam e se desenvolviam econômica e socialmente – e a do campo – atrasada, subdesenvolvida, marcada pela miséria, pela fome, doenças e analfabetismo, onde se encontrava a maior parte da população. Para que o país como um todo deixasse de ser subdesenvolvido, era preciso resolver os problemas do campo, eliminando sua causa e o principal obstáculo à mudança: o latifúndio.

    A reforma agrária contava com o apoio popular e o empenho do presidente João Goulart. Manifestações, greves e ocupações de terras pressionavam o Congresso que, no entanto, mostrava forte resistência a qualquer medida de redistribuição da propriedade da terra. Um dos últimos atos de João Goulart na Presidência foi a desapropriação de terras localizadas em áreas beneficiadas por obras públicas, medida anunciada em um comício na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 13 de março de 1964, na presença de mais de 100 mil pessoas. Dezoito dias depois, foi derrubado pelo golpe militar [Ver Dossiê Golpe de 1964, RHBN nº 83].

    O curioso é que coube ao primeiro presidente militar, Humberto de Alencar Castelo Branco, criar uma lei de reforma agrária, o Estatuto da Terra, em 30 de novembro daquele mesmo ano. Certamente pesaram na decisão a legitimidade popular da medida e o apoio do governo norte-americano, que via nas reformas um antídoto contra revoluções socialistas em países agrários. Mas em um quadro de desmobilização imposto pela repressão e por intervenções nas organizações de trabalhadores, a reforma não saiu do papel: direitos foram ignorados, expulsões avançaram e a violência continuou a marcar o cotidiano dos trabalhadores, assim como a pobreza, as más condições de saúde e o alto analfabetismo.

    Quase três décadas após o fim do regime militar, a persistência de problemas mostra a dificuldade de se saldar a dívida em relação ao mundo rural. Alguns indicadores, como o da educação, melhoraram. Outros, como o da pobreza, merecem uma análise mais cuidadosa. Das mais de 20 milhões de pessoas que saíram da miséria durante os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre 2003 e 2010, metade estava no campo. A redução relativa da pobreza no campo, portanto, foi superior à da cidade, mas não graças ao trabalho, que teve retração na área rural. Ela foi resultado principalmente de políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, e de reajustes de aposentadorias, que vêm tendo um peso crescente nos ganhos das famílias rurais. Mas se essa desigualdade caiu, a de propriedade da terra permaneceu praticamente inalterada em níveis altíssimos desde os anos 1960, mesmo com o assentamento de mais de 1 milhão de famílias nas últimas décadas.

    As grandes propriedades não apenas se mantêm, como vêm se ampliando. A diferença é a visão que a sociedade tem delas, hoje positiva: não são mais identificadas como obstáculos, mas como promotoras do nosso desenvolvimento. O latifúndio se modernizou, tornou-se empresa, e o agronegócio deslocou a reforma agrária do centro do debate político. Apesar do esforço de suas entidades representativas para consolidar uma imagem de modernidade e eficiência, ainda surgem manchas, como desmatamentos, assassinatos de lideranças rurais e condições de trabalho análogas às de escravidão. É o Brasil arcaico que não se vê nas imagens aéreas.

     

    Mario Grynszpané professor da Universidade Federal Fluminense e autor de “Da barbárie à terra prometida: o campo e as lutas sociais na história da República”. In: GOMES, Angela de Castro; PANDOLFI, Dulce Chaves & ALBERTI, Verena (orgs.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

     

    As Ligas Camponesas

    De todas as organizações de trabalhadores rurais surgidas no período anterior ao golpe militar de 1964, a que se tornou mais conhecida foram as Ligas Camponesas. A primeira delas surgiu em 1955, em um engenho do município de Vitória de Santo Antão, o Galileia, cujos trabalhadores encontravam-se ameaçados de despejo. Foi a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco. Dentre os que prestaram apoio aos trabalhadores, estava o advogado e então deputado estadual Francisco Julião (1915-1999), que veio a se tornar o principal líder das Ligas. Do polo inicial elas se expandiram para outros municípios e outros estados. Mas sua presença foi mais forte no Nordeste, em Pernambuco principalmente, mas também na Paraíba, onde o líder da Liga da região de Sapé, João Pedro Teixeira, foi assassinado em 1962 como reação de proprietários. Deve-se em parte à atuação das Ligas a disseminação do uso do termo “camponês” para se referir às diferentes modalidades de trabalhadores rurais. Com a criação dos sindicatos, as Ligas perderam espaço e se isolaram. Em parte, isso se deveu à sua radicalização no início dos anos 1960, defendendo uma reforma agrária “na lei ou na marra”, isto é, com ou sem aval do Congresso.

     

    Saiba mais - Bibliografia

     

    DEZEMONE, Marcus. “Legislação social e apropriação camponesa: Vargas e os movimentos rurais”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 21 (42), p. 220-240, 2008.

    NERI, Marcelo Côrtes; MELO, Luísa Carvalhaes Coutinho de & MONTE, Samanta dos Reis Sacramento. Superação da pobreza e a nova classe média no campo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.

     

    Internet


    MEDEIROS, Leonilde Servolo de. “A luta por terra no Brasil e o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra”. http://geopr1.planalto.gov.br/saei/images/publicacoes/2009/nota_tecnica_a_luta_por_terra_no_brasil_e_o_movimento_dos.pdf

    MEDEIROS, Leonilde Servolo de. “Os trabalhadores do campo e desencontros nas lutas por direitos”.
    http://w3.ufsm.br/gpet/files/Texto.pdf

     

    Filme
    Cabra marcado para morrer (1984), documentário de Eduardo Coutinho.