O olho do visitante vai certeiro para as pinturas da sala de espetáculos do centenário Teatro da Paz, em Belém do Pará, quando ele entra ali pela primeira vez. Não há como ignorar, no teto, a alegoria do italiano Domenico de Angelis (1853-1900), produzida em 1889. Tampouco se pode deixar de notar a peça que separa a plateia do palco, o pano de boca com a instigante “AlegoriadaRepública”, do pernambucano Crispim do Amaral (1858-1911). Produzida na França, é uma das primeiras representações republicanas expostas no Brasil. Foi inaugurada sob vaia em 15 de agosto de 1890, e por muito tempo guardou-se um equívoco sobre sua autoria. Nos anos 1960, quase se perdeu por descaso.
Em primeiro plano, a pintura a óleo, de 105 metros quadrados, perfila caboclos, índios, mulatos e personagens mitológicos greco-romanos – em destaque, Urânia e Clio. O “homem comum” da região é retratado como o ribeirinho de peito nu e o citadino de chapéu e vestes surradas. Todos dirigem seus movimentos e olhares para Marianne, a tradicional representação francesa da República.
Ainda nesse plano, são retratados chefes indígenas ostentando plumárias especiais, a indicar sua hierarquia, e militares de diferentes patentes. Já no segundo plano, e a caminho de um ponto de fuga, distinguem-se outros índios e militares na multidão que celebra o novo regime. Aqui, a figura do nativo ainda se sobrepõe à do negro na caracterização do “elemento nacional”, sobretudo no Pará, onde a importância da presença do negro só vai ser afirmada pela historiografia na segunda metade do século XX.
A figura de Marianne traz alusões tanto à Primeira República francesa, de 1789 – a fase mais aguerrida, simbolizada pelo barrete frígio –, quanto à Segunda República, de 1848, quando é suavizada para transmitir segurança, tranquilidade e força. Amaral visitou Paris em 1888, e tomou conhecimento das mudanças na caracterização de Marianne, daí mostrá-la com atributos da nova fase: sentada, vestida com túnica e manto, e ornada com a coroa de louros. Não é possível identificar o uso de sandálias, símbolo da segunda fase, mas há uma auréola em lugar das armas da fase anterior. Um resplendor triangular remete aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.
O artista ainda usa um artifício para ressaltar a ficção da alegoria: a espessa moldura dourada, também pintada, entremeada com flores e palmas, que se ajusta a outra moldura formada pelo arco do proscênio.
Quando inaugurado, o pano recebeu muitas vaias. Segundo relato de Victor Maria da Silva, então administrador do teatro, o público não gostou de ver um “genuíno mulato” segurando o pavilhão nacional. Isso é intrigante, pois não é um mulato quem carrega a bandeira, e sim um ruivo oficial do Exército. Porém, outras questões envolvem a peça de Amaral, mulato que encarou as lutas do seu tempo de um modo particular e teve seu nome inscrito na história do Teatro da Paz e do Teatro Amazonas, este em Manaus, para o qual produziu o pano de boca “Encontrodaságuas”.
As pinturas de Amaral e De Angelis não faziam parte do projeto original do teatro, construído sob denúncias de superfaturamento e uso de material de baixa qualidade, de 1869 a 1878. Elas foram inseridas na primeira reforma, entre 1887 e 1890, para “completar o seu embelezamento”, segundo o governo. Desde a inauguração, em 15 de fevereiro de 1878, a imprensa criticava a decoração simplória da casa de espetáculos. A pena mais ferina da capital, o literato José Veríssimo (1857-1916) havia registrado seu desagrado em A Provínciado Pará, depois da pompa da noite de abertura: “Se exteriormente o Teatro da Paz é desjeitoso e em contrário a todas as regras da arquitetura, interiormente é nu, sem arte, sem gosto, sem riquezas, sem luxo”.
Na concepção de arquitetura cênica herdada do Barroco – pautada pela visualidade, sobretudo pela presença de elementos alegóricos, hiperbólicos e ilusionistas –, um teatro de ópera tinha de se impor pela suntuosidade e pela capacidade de inebriar o observador. Até então, o Teatro da Paz não conseguira esse ideal.
Erguido quando Belém já se tornara uma praça artística de relevância no Brasil e o látex do Grão-Pará se destacava na pauta de exportações do Império, o Teatro da Paz foi projetado pelo engenheiro militar pernambucano José Tibúrcio Pereira de Magalhães no ponto mais alto da Praça Dom Pedro II, atual Praça da República. Esse projeto foi bastante modificado pelo engenheiro paraense Antônio Augusto Calandrini de Chermont, que fez acréscimos onerosos para deixá-lo mais vistoso.
Apesar da fortuna de 800 contos de réis gasta – o dobro do orçamento original –, a obra foi concluída sem decoração de luxo e com erros graves. A colunata em número de sete na fachada, por exemplo, feria o estilo neoclássico, pois as regras clássicas determinam colunas pares. Mas a reforma cuidou de outras demandas, sobretudo no telhado e na atualização de serviços essenciais, como a canalização de esgoto e de água. O teatro foi um dos primeiros prédios públicos de Belém a ter água potável encanada, uma novidade na época, igualando-se a Paris e Londres, que também inauguravam esses benefícios.
Para solucionar a falta de jeito e de beleza, o governo contratou os pintores Domenico de Angelis e Crispim do Amaral. O italiano, em 1887, para a decoração dos camarotes e do teto. O brasileiro, em 1889, para fazer cenografia nova, incluindo o pano de boca.
Hoje integrada ao conjunto arquitetônico, a “AlegoriadaRepública”, pela trajetória de sua criação e de seu autor, deixa reflexões sobre a relação entre o Estado e o artista, a responsabilidade do poder público sobre o patrimônio artístico do país e o tema do apagamento na História.
Crispim do Amaral nasceu em Olinda, mas foi no Recife que recebeu as primeiras lições de arte. Chegou a Belém em 1876, aos 18 anos, como cenógrafo da Empresa Vicente, do conterrâneo Vicente Pontes de Oliveira, responsável pelas primeiras temporadas dramáticas do Teatro da Paz. Também trabalhou em estúdios fotográficos, foi professor de desenho, ator, músico, caricaturista e jornalista. Boêmio e namorador, Amaral editava revistas de humor nas quais ironizava a elite.
Ele chegou a ser contatado pelo governo para pintar o pano de boca do teatro bem antes de ser contratado de fato. Em 1886, recebeu a encomenda e entregou um estudo de três contos de réis: uma peça em tom vermelho com uma larga barra de motivos florais entremeados com fios dourados, mas o projeto não foi adiante.
Em 1889, por solicitação do governo, enviou novo projeto para o pano de boca, agora orçado em 23 contos de réis. E de novo seu nome foi rejeitado sob o argumento de que, na Corte e na Europa, a peça teria menor preço e maior qualidade. Aos olhos daquela elite, Amaral era apenas um pintor de província, não opintor à altura do teatro imaginado pelos homens no poder. Mas a imprensa o apoiava, e isso fazia diferença. Um exemplo: ainda em 1883, o Diário de Notícias aderiu a uma campanha do artista destinada a arrecadar fundos para que ele pudesse estudar em Roma.
Com a instabilidade política no Pará no final da monarquia e a troca de presidentes da Província, os ofícios da administração provincial são descontínuos e não deixam claro quem teria sido o responsável pela contratação. Finalmente, a Junta Provisória do Estado assinou o contrato, e as flores deram lugar a motivos republicanos na criação artística.
Quando viveu na Europa, Amaral conheceu Eugène Carpezat (1833-1912), cenógrafo da Ópera de Paris e dono do ateliê onde o pano foi confeccionado a partir do projeto de Amaral. A assinatura do brasileiro não aparece na obra, e sim a marca do Atelier Carpezat, o que redundou na ideia de que Carpezat seria o autor da peça. Mas é fato que o telão apresenta características estéticas da obra do brasileiro. Correspondências entre Amaral e a administração do teatro, nas quais a contratação dele é informada, corroboram sua autoria. Por que ele não assinou a peça, se tinha competência para tanto, é uma incógnita.
No final do século XIX, ele voltou à Europa e trabalhou na imprensa. No retorno ao Brasil, morou no Rio de Janeiro, onde ajudou a fundar e a dirigir a revista O Malho, e onde morreu em 1911.
O fim da Era da Borracha marcou o abandono do Teatro da Paz, que em 1963 foi tombado pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan). Em 1966, sob a direção do legendário compositor paraense Waldemar Henrique, o edifício passou por uma reforma. O músico testemunhou o descaso a que o telão foi submetido: quase descartado como objeto sem valor. Restaurado e reconduzido à cena, o pano de boca ainda atrai olhares como a pedir-lhes que o decifrem.
Rose Silveira é jornalista e autora de Histórias invisíveis do Teatro da Paz: da construção à primeira reforma – Belém do Grão-Pará (1869-1890) (Paka-Tatu, 2010).
Saiba Mais - Bibliografia
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 16ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
SALLES, Vicente. Épocas do teatro no Grão-Pará ou Apresentação do teatro de época. Belém: Editora da UFPA, 1994.
Saiba Mais - Internet
Eugène Carpezat
www.insecula.com/contact/A010146.html
Theatro da Paz
Biblioteca Virtual do Amazonas
A República segundo o Pará
Rose Silveira