A Roma do Oriente

Patricia Souza de Faria

  • Magnífica, ilustre e santa. Foi com esses adjetivos que o historiador português João de Barros (1496-1570) descreveu Goa em 1563, no terceiro volume de Décadas de Ásia. Ele já separava a cidade antiga, onde ídolos eram cultuados, daquela que se modificava e incorporava, à força, a religiosidade do Ocidente. A região foi anexada pelos portugueses em 1510, quando Afonso de Albuquerque (1453-1515) tirou o sultão Yusuf Adil Khan (1459-1511) do controle de Bijapur. Mas como foi possível transformá-la em um reduto católico e centro do poder político português no Oriente?

    Goa foi a primeira conquista lusitana no Oriente em que a soberania do rei teve que ser imposta. Antes disso, os portugueses anexaram territórios com a autorização dos governantes locais. Até então, seu território vinha sendo disputado por hindus e muçulmanos. O hinduísmo predominava em Goa, que era um grande entreposto comercial onde rotas marítimas e terrestres se encontravam. Situada na costa ocidental da Índia e banhada pelo Mar da Arábia, Goa estava isolada do interior do continente pela cordilheira dos Gates. Já suas terras eram produtivas, principalmente pelo cultivo do arroz. Para portugueses como Afonso de Albuquerque, a conquista da região facilitaria o controle do precioso comércio das especiarias.

    Posteriormente, na década de 1540, eles incorporaram Salsete e Bardez, as outras duas províncias da região das Velhas Conquistas – expressão usada para designar a Ilha de Goa e os territórios adjacentes anexados e cristianizados no século XVI. Na segunda metade do século XVIII, ainda tomariam posse das Novas Conquistas de maioria hindu: Perném, Bicholim, Satari, Pondá, Quepém, Canácona e Sanguém. Como as Novas Conquistas se situavam entre as Velhas Conquistas e os reinos indianos vizinhos, transformaram-se em uma área de proteção da região cristianizada contra as investidas de governantes locais da Índia.

    Os portugueses tentaram moldar a cidade de Goa como se fosse um espelho de Lisboa, criando instituições similares às de Portugal, como o Tribunal da Relação de Goa, para a administração da Justiça no império asiático português. Em 1532, foi criado um bispado, elevado a arcebispado em 1557, e três anos depois foi instalado um Tribunal do Santo Ofício na região, o único em um domínio português no além-mar. A cidade se tornou sede do poder civil e eclesiástico dos diversos domínios, conquistas e feitorias lusas da costa oriental africana até o Extremo Oriente. Esses domínios eram caracterizados pela descontinuidade territorial – estavam espalhados desde Moçambique até Macau.

    No início da colonização de Goa, entre 1510 e 1540, hindus e muçulmanos mantinham jurisdições separadas e eram tolerados, enquanto os cristãos representavam a minoria. Portugal conseguia manter parcerias comerciais e militares com os habitantes da região, mas ainda havia muitos templos e tanques sagrados – construções onde eram realizados rituais – espalhados por toda parte. Por isso, teve início, na década de 1540, durante o reinado de D. João III (1521-1557), uma política de conversão em massa dos goeses ao catolicismo. As aldeias locais chegaram a ser repartidas entre a Companhia de Jesus e a Ordem de São Domingos para que fossem evangelizadas. Com a expansão dessa política, os franciscanos passaram a administrar as paróquias de Bardez e os jesuítas, as de Salsete.

    Nesse período, as autoridades civis e religiosas assumiram posturas rigorosas e destruíram centenas de templos hindus. O vice-rei do Estado da Índia, D. Pedro de Mascarenhas (1554-1555), impediu a realização de cerimônias hindus e muçulmanas. D. Constantino de Bragança (1558-1561) reiterou a proibição do sati – suicídio ritual de viúvas – e fez com que todos os brâmanes – a casta mais valorizada na Índia, formada principalmente por sacerdotes de seitas hindus – fossem retirados da região.

    Privilégios como cargos, isenção de tributos, arroz e vestidos, eram concedidos pelos reis de Portugal aos goeses que se convertessem, enquanto aqueles que resistiam à mensagem cristã sofriam restrições. De acordo com o 1º Decreto do Concílio Provincial de Goa (1567), o uso da força para obter as conversões não era lícito, mas as medidas estipuladas não garantiram muita liberdade de escolha. O concílio obrigava os maiores de 15 anos – mesmo os que não fossem cristãos – a ouvir pregações aos domingos e proibia os diálogos demorados e as refeições que reunissem cristãos e pagãos na mesma mesa. Se um cristão estivesse enfermo, não poderia autorizar a visita de um não cristão, ainda que fosse o seu pai! Se uma criança de família não cristã ficasse órfã de pai, ela deveria ser retirada à força do lar para ser entregue a um tutor cristão, mesmo se a mãe e os avós estivessem vivos.

    Parte da renda que no passado sustentava os templos hindus passou a financiar as atividades das ordens religiosas, que cuidavam dos enfermos, forneciam comida, sepultavam mortos e visitavam prisões. Além de se valer da assistência para atrair os goeses, os religiosos tentaram difundir a fé católica e os “bons costumes” por meio do ensino da doutrina cristã e da alfabetização.

    Em 1541, foi criada a Confraria de Santa Fé, cujo objetivo era converter e dar assistência àqueles que haviam acabado de ser batizados, e criar um seminário, posteriormente administrado pelos jesuítas, como o Colégio de São Paulo. A instituição deveria se responsabilizar pela educação de meninos de todo o Oriente, para que difundissem o Evangelho. Aqueles que se mostrassem aptos para o sacerdócio aprenderiam gramática, música, retórica, filosofia e teologia. Mas os meninos que não eram ordenados acabavam atuando como “línguas” (intérpretes) e cumprindo um papel importante na evangelização do Oriente.
    Para facilitar a transmissão das doutrinas básicas do cristianismo, catecismos, dicionários e livros que contavam as vidas dos santos começaram a ser traduzidos para as línguas nativas. A Vida de São Pedro (1629), por exemplo, foi escrita em bramana-marata pelo jesuíta Estevão da Cruz. Traduções como essa e a prática da caridade, as festas e os batismos, foram meios aparentemente “suaves” de persuadir os goeses a seguir a fé católica. Mas não houve consenso em relação aos métodos de cristianização. Alguns padres forçaram os indianos a comer carne de vaca, animal considerado sagrado na Índia, ou cortaram à força o corumbi – rabicho na cabeça – de muitos deles para que fossem rejeitados pelo próprio grupo social e tivessem que se render ao cristianismo.

    Essas medidas violentas estimularam a resistência dos goeses, que acabaram se envolvendo em confrontos diretos com as autoridades civis ou religiosas. Apesar da destruição dos templos e da proibição dos sacrifícios a deuses locais, eles conseguiam realizar ritos clandestinos em territórios islâmicos, como se vê na correspondência que alguns inquisidores trocavam em 1588. De acordo com essas cartas, os novos cristãos iam para as “terras de mouros ou gentios, andando vestidos ao seu modo”, e se entregavam às práticas antigas abominadas pelos portugueses. Mensagens escritas em 1646 se referiam ao “maior ato de adoração dos pagodes” – os ídolos e templos hindus – a partir de “sacrifícios de fogo, sangue”.

    Mas a reação local não se restringia a isso. Ocorreram confrontos violentos, como o que foi relatado muito tempo depois pelo jesuíta Sebastião Gonçalves. Os habitantes de Salsete haviam sido descritos como péssimos vassalos, e por isso tiveram seus templos destruídos e as aldeias incendiadas. Alguns padres se atreveram a despedaçar um formigueiro dedicado ao culto dos deuses locais e a espalhar as vísceras de uma vaca para profanar o templo. A reação foi implacável: quatro padres e um irmão leigo da Companhia de Jesus foram assassinados em julho de 1583. O padre Rodolfo Aquaviva foi ferido nas pernas, no pescoço e nos ombros. O padre Berna teve um dos olhos furado por um zaguncho – um tipo de lança –, metade da orelha direita decepada e ainda, segundo Gonçalves, “lhe cortaram as partes secretas e as meteram na boca”.

    Se alguns goeses convertidos aproveitaram as oportunidades oferecidas, não foram poucos os episódios caracterizados pela reação da população local às mudanças promovidas pelos portugueses. Especialmente a partir de 1540, quando os monarcas lusitanos incentivaram a conversão em massa e construíram igrejas sobre os escombros dos templos hindus, transformando a região de Goa em um enclave católico em meio a domínios muçulmanos e povos hindus.

    Neste ponto, a experiência de Portugal em Goa pode ter contribuído para a cristianização do Brasil. Foi no império asiático português – por meio de missões que se estenderam da Índia ao Japão – que os jesuítas conheceram os primeiros grandes desafios de conversão os gentios, e só posteriormente, em 1549, começaram a desenvolver a experiência no Brasil.


    PATRICIA SOUZA DE FARIA é professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autora da tese “A conversão das almas do Oriente: franciscanos, poder e catolicismo em Goa. Séculos XVI – XVII” (UFF, 2008).


    Saiba mais

    MENDONÇA, Delio de. Conversions and citizenry: Goa under Portugal. 1510-1610. New Delhi: Concep Pub., 2002.

    SOUZA, Teotónio R. de. Goa medieval: a cidade e o interior no século XVII. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.

    TAVARES, Célia da Silva. Jesuítas e inquisidores em Goa. Lisboa: Roma Editora, 2004.

    XAVIER, Ângela Barreto. A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008.