A seca vida nordestina

Tania Nunes Davi

  • Seca, concisa, calcada numa ironia impiedosa consigo e com os outros, embalada em uma gramática impecável, com personagens densos que nos permitem pensar a História do Brasil no início do século XX. Assim é a literatura de Graciliano Ramos (1892-1953), autor que só se permitia escrever sobre aquilo que viveu e sentiu. Tanto seus romances ficcionais (São Bernardo, de 1934, e Vidas secas, de 1938) como os memorialistas (Infância, de 1945, e Memórias do Cárcere, de 1953), entre outros, dão acesso às múltiplas representações do Brasil do Nordeste, da seca, da industrialização e do governo repressivo de Getulio Vargas (1930-1945).

    O personagem Paulo Honório de São Bernardo, por exemplo, pode ser visto como representação de um Brasil que teria se entregado ao capitalismo e no processo se esquecido de quem era. Honório era um indivíduo que gastou “muita enxada ganhando cinco tostões por doze horas de serviço”, e passa a tratar os empregados como foi tratado, na base da violência, do chicote, como “bichos” ou “mulambos”. Não eram propriamente humanos, mas “coisas” necessárias para que a fazenda funcionasse e deviam uma obediência cega à autoridade do patrão.

    Já em Vidas secas, a paisagem natural do sertão nordestino não é benevolente com o homem, não possibilita que ele se fixe na terra, pois a cada seca ele tem que buscar novas áreas e recursos para sobreviver. O personagem Fabiano é apresentado como um homem em situação muito semelhante à de milhares de nordestinos de ontem e de hoje que são obrigados a se mudar periodicamente. Não têm estudo nem perspectivas de melhorias para si ou seus filhos. Segundo Graciliano, são seres esquecidos pelas autoridades de um país que só se recorda da região para criar planos emergenciais mirabolantes que privilegiam os políticos, os proprietários e os corruptos.

    Fabiano era extorquido pelo patrão que roubava nas contas, pelo governo que cobrava impostos sem dar retorno, e pela polícia, que batia e prendia sem motivo. O patrão o descompunha aos berros “porque podia descompor (...). Sempre fora assim”. As contas do amo diferiam das de Sinhá Vitória, e Fabiano sabia-se roubado, mas emudecia e se questionava: “Estava aquilo direito? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!” Um questionamento que não o levava à ação, mas apenas à certeza de ser explorado. Os resquícios da escravidão somavam-se a pouca educação recebida no sertão retirando dos sertanejos as possibilidades de mudar sua história de subserviência.

    O Nordeste mantinha historicamente uma relação de compadrio, de coronelismo e de dependência do trabalhador rural para com o dono das terras. Essa sujeição aos ditames dos patrões era marcada pela ditadura da terra. Nas décadas de 1950 e 60, essa realidade foi questionada por vários movimentos de esquerda, pelas Ligas Camponesas e por setores da Igreja Católica. Cada uma dessas propostas reivindicava melhorias no campo, pelos direitos do trabalhador rural, pela reforma agrária e pela quebra de um quadro psicológico de dependência. Esses movimentos, em grande parte, foram silenciados pelo golpe civil-militar de 1964, mas muitos de seus militantes continuaram atuando na ilegalidade. Alguns foram presos e mortos pela política repressora dos governos militares.

    Nos romances memorialistas (Infância e Memórias do Cárcere), Graciliano Ramos ficcionaliza determinados momentos de sua vida e produz representações, respectivamente, sobre a educação no interior do Brasil no início do século XX e sobre as prisões do governo varguista após a Intentona Comunista de 1935. Em Infância, além de traçar um retrato impiedoso das relações familiares patriarcais, mostrando como os pais tinham um poder quase absoluto sobre a vida e o desenvolvimento de seus filhos, utilizando castigos físicos e psicológicos em diversos graus para exercer sua autoridade.

    Graciliano ainda constrói um arguto olhar sobre os métodos de educação utilizados no interior do Brasil. Segundo o autor, “aos nove anos, eu era quase analfabeto” em decorrência de um sistema de ensino deficitário, tradicionalista e sem um programa claro de conteúdos a serem ministrados. Somava-se a isto o despreparo dos professores e o enorme poder que estes tinham sobre seus alunos. Isto reflete o horror que o menino Graciliano sentiu quando lhe informaram que iria para a escola, pois esta era, “segundo informações dignas de crédito, (...) um lugar para onde enviavam as crianças rebeldes. Eu me comportava direito: encolhido e morno, deslizava como sombra. (...) A escola era horrível”.   

    A maioria dos professores citados em Infância era de negros ou mulatos e reproduziriam na escola as relações conflituosas que teriam vivenciado fora dos muros – da subserviência à violência. D. Maria do Ó, uma das professoras do menino Graciliano, era adepta da violência física como forma de se impor aos alunos. Descrita como “mulata fosca, robusta em demasia, uma das criaturas mais vigorosas que já vi”, ela se relacionava com os alunos com “repelões” e “berros” ou como em uma ocasião quando “D. Maria do Ó envolveu a mão nos cabelos da menina, deixando livres o indicador e o polegar, com que me agarrou uma orelha. E, tendo-nos seguros, agitou o braço violentamente: rodopiamos como dois bonecos e aluímos sobre os bancos”. Outros professores não usavam violência, mas compactuavam com o pouco conhecimento que os alunos e eles mesmos tinham. Isto fica claro no episódio narrado por Graciliano no qual ele não consegue ler o nome de um autor (Samuel Smiles) e a professora Agnelina utilizava várias formas de pronunciar o nome em inglês porque ela mesma não sabia o idioma.

    As obras de Graciliano Ramos conseguem mostrar o despreparo de professores da educação brasileira no início do século XX. Alguns atuavam em outras áreas que não a de sua formação, outros sequer eram formados. Esta situação também aponta para o desinteresse do governo em efetivar políticas educacionais que normatizassem os currículos e as ações pedagógicas nos vários níveis de ensino.

    Em Memórias do cárcere, Graciliano Ramos relata suas experiências e vivências como preso político do governo Vargas. Ele foi preso em sua casa, em Alagoas, em 3 de março de 1936, e libertado, no Rio de Janeiro, em 13 de janeiro de 1937. Nunca soube o motivo da sua prisão, apesar de especular que era por ser simpatizante do comunismo, doutrina perseguida naquele momento.

    As prisões pelas quais passou tornam-se uma metáfora da sociedade brasileira. Graciliano construiu um microcosmo de um Brasil marcado pelas desigualdades expressas nos vários tipos humanos que encontrou naquelas celas. No início, era um prisioneiro de alta classe. Tinha regalias, como estar em num quartel, com água e comida regularmente distribuída, além de certa privacidade e mobilidade. Passa, em seguida, para a condição de prisioneiro remediado, quando é transportado para o Rio de Janeiro, em um navio, e começa a sentir na pele a falta de privacidade, de higiene, de alimentação, de liberdade, que vão se estender até a Casa de Correção, no Rio de Janeiro. Por fim, a degradação física e psicológica na Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro.

    Ao longo deste trajeto ele conheceu tipos humanos que vão de militares “energúmenos microcéfalos vestidos de verde” que fazem “demonstrações bestas de força”, passando pelos vários segmentos de comunistas com suas ideologias diferentes sobre revolução e ativismo político (como Luiz Carlos Prestes), mulheres encarceradas (como a médica Nilse da Silveira e a alemã Olga Benário) e presos comuns.

    Em geral, os livros didáticos passam brevemente sobre os temas mais controversos do governo Vargas, mas continuam importantes para percebermos o contexto histórico de ações posteriores, como o golpe civil-militar de 1964. Se não explorarmos as questões conflitantes das décadas de 1930 e 1940, deixaremos passar a oportunidade de estudar a multiplicidade de projetos políticos surgidos no Brasil, tanto à direita como à esquerda, após ou durante o governo Vargas.

    Em Graciliano, especialmente, percebemos que a ficção nunca está totalmente isenta da realidade. Elas se perpassam, inclusive em suas narrativas, mesmo as mais romanceadas. Seu olhar sobre a sociedade possibilita discussões que ampliam as interpretações dos livros didáticos e mostram faces menos observadas da trajetória do Brasil. É mais que complementar.

    Tania Nunes Davi é professora da Fundação Carmelitana Mário Palmério (Fucamp – Monte Carmelo/MG) e autora de Subterrâneos do autoritarismo em Memórias do cárcere de Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos (UFU, 2007).

    Saiba mais:

    CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da Era Vargas. Brasília: Editora da UnB, 1993.

    MORAES, Denis. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012.

    RAMOS, Ricardo. Graciliano Ramos: retrato fragmentado. Rio de Janeiro: Globo Editora, 2011.

    Internet: Site oficial de Graciliano Ramos. http://graciliano.com.br/site/