A sensual Messalina

Camila Dazzi

  • Deitada, com os seios à mostra, envolta apenas em um lençol: assim o pintor Henrique Bernardelli (1857-1936) representou a imperatriz romana Valéria Messalina (d.C. 17 a 20 – 48). O quadro, apresentado pela primeira vez em 1890, na Exposição Geral de Belas Artes do Rio de Janeiro, trazia a mulher, tida como devassa em seu tempo, em pose sensual. A reação do público variou entre o espanto e a admiração.

    Mas não foram somente a postura e a falta de roupas da figura retratada que provocaram impacto. Bernardelli, não por acaso, escolheu para pintar uma mulher que só pelo nome já evocava luxúria, remetendo a uma homônima muito anterior. A primeira Messalina de que se tem notícia era a segunda esposa do imperador romano Cláudio (40 d.C.). Ela ficou conhecida pela vida promíscua e pelas traições ao marido. Uma fama que já dura séculos.   

    A obra estava claramente vinculada a sexo. Além disso, transportada para o século XIX pelo pintor, Messalina aparece como símbolo da moderna mulher fatal, tipo feminino que só deseja o prazer sexual e não tem o menor apreço pelos laços familiares. Esta foi uma obsessão que dominou a mente masculina no período e era fruto das primeiras reivindicações feministas. A superioridade dos homens entrava em crise, desmantelando-se frente aos debates sobre divórcio, métodos anticoncepcionais e a busca por direitos iguais.  Um bom exemplo de feminismo é a Convenção dos Direitos da Mulher, promovida por militantes dos Estados Unidos em 1848, que deu o pontapé inicial no movimento sufragista feminino naquele país. Nessa Convenção, redigiu-se uma declaração que começava com a frase: “Acreditamos que estas verdades são evidentes: que todos os homens e mulheres foram criados iguais...”. A mulher tornava-se, assim, uma ameaça potencial.

    Aquelas que ousavam buscar o gozo nas relações sexuais eram consideradas perdidas, sem moral. O marido que percebia a mulher sensível a carícias suspeitava, de imediato, que ela estava entregue ao vício do prazer carnal. A esposa podia até ceder aos avanços do companheiro, desde que mostrasse repugnância nas primeiras tentativas. Uma concessão que tinha como fim a gravidez. Não é de espantar que as mudanças que começavam a ocorrer assustassem o sexo masculino.  

    Mulheres como Messalina, além de devassas, eram péssima companhia: frequentemente conduziam o seu homem – marido ou amante – à ruína moral e mesmo à morte. São incontáveis os romances, as pinturas e esculturas em que encontramos essa figura sinistra nas suas mais diversas vestes. “Salomé” (1876), pintura de Gustave Moreau (1826-1898), retrata a bela e sedutora personagem do Novo Testamento, responsável pela execução de João Baptista, dançando diante da cabeça suspensa do santo. A Condessa Vésper (1886), romance de Aluísio Azevedo (1857-1913), conta a história de Ambrosina, que muito cedo aprende a usar sua sexualidade para vencer no mundo masculino. Após uma série de infortúnios, fica na miséria, tornando-se cortesã, tanto para o seu sustento como para suprir seus desejos carnais.

    Esta concepção negativa da mulher, conhecida como misoginia, foi reforçada no campo das artes em parte devido aos textos de Joséphin Péladan (1859-1918), criador da sociedade francesa Rosa+Cruz do Templo e do Graal em 1890. O principal propósito dessa associação era reintroduzir nas artes o culto ao ideal, com ênfase na beleza e na tradição. Por meio dos textos de Péladan que foram publicados em importantes jornais franceses, a sociedade exerceu grande influência na cultura no século XIX. Para os participantes da ordem, a mulher era um ser abominável. Segundo sua filosofia, todos os espíritos imanentes de Deus se degradariam ao tombarem no mundo da matéria e dos sentidos, mas só alguns conseguiriam se libertar para reencontrar sua pureza primitiva. O espírito feminino dificilmente conseguia se libertar. Por isso, o corpo da mulher seria malicioso, horrível, inferior, vinculado a todas as degradações físicas e morais.

    Na Itália – onde Bernardelli vivia quando pintou sua tela –, a mística da Ordem Rose+Croix se aproximava muito do trabalho de artistas italianos e estrangeiros que buscavam uma pintura de cunho idealista, ou seja, que se opunha à busca pela realidade. Na obra de alguns deles, a mulher é representada como um ser malignamente belo ou como pecadora em busca de redenção.

    Não foram poucas as fontes de inspiração de Henrique Bernardelli para a realização de “Messalina”. Uma delas é a obra do belga Félicien Rops (1833-1898), renomado pintor do final do século XIX. As telas com mulheres belas, pérfidas e ninfomaníacas eram amplamente conhecidas, inclusive na Itália. Seu quadro “A bebedora de absinto” (1876), retrato de uma jovem dos subúrbios parisienses, foi considerado a mais bela encarnação deste tipo de mulher fatal.   

    Traços do decadentismo de fins do século XIX – que envolviam uma visão pessimista do mundo e um estado de tédio que levava à busca incessante de sensações novas, inclusive no campo sexual, mais intensas, muitas vezes extravagantes e mesmo mórbidas – também estão presentes na “Messalina” de Bernardelli, já que ela expressa o desejo sexual insaciável que conduz à morte. É justamente esta a principal ideia que Henrique Bernardelli tentou transmitir com sua tela, sobretudo por meio da pose que escolheu para representá-la. Reclinada sobre almofadas, ela permanece na cama como se tivesse tombado ali para relaxar, satisfeita e exausta após o ato sexual, deleitando-se com o momento que se segue ao gozo. Há algo na sua postura que intriga, um certo abandono, algo de inanimado, como se o corpo não fosse mais senhor de si. Uma ambiguidade que também faz pensar em uma mulher morta.

    Teria sido intencional? Parece que sim. A pose da imperatriz romana no retrato faz parte de uma longa tradição na iconografia europeia. O braço direito estendido, sem força, sobre a almofada evoca obras como a “Pietà”, de Michelangelo (1475-1564), “Colocação no Túmulo”, de Caravaggio (1571-1610) e Rafael (1483-1520), e “Marat”, de Jacques-Louis David (1748-1825). De cunho religioso ou profano, as representações têm em comum o motivo do braço direito caído como indício da morte. A própria Messalina teve um destino trágico: foi executada, provavelmente aos 23 anos, a mando do imperador Cláudio.

    Outro indício soturno é o lugar onde deita Messalina. Não é possível assegurar que seja uma cama. A estrutura de mármore sobre a qual se encontra um baixo-relevo remete aos sarcófagos da Antiguidade. No relevo, um homem nu, acompanhado por um cão, segura um caduceu (bastão com duas serpentes enroscadas e com duas asas na extremidade superior). Apesar da aparente singeleza, a imagem tem um significado bastante forte: remete a Hermes, que na mitologia grega era quem conduzia as almas até sua última morada.

    O lugar onde se praticam os prazeres carnais pode ser também um leito de morte. Se viva, a mulher sobre o sarcófago representa aquela que conduz o homem à morte; se morta, é aquela cuja devassidão e cujo desejo insaciável só puderam ser contidos por um assassinato. O gozo e a morte lado a lado. Messalina foi a forma que Bernardelli encontrou para alertar seus espectadores sobre o perigo da femme fatale.  

    Camila Dazzi é professora de História da Arte do Cefet-Fribugo, autora da dissertação “Relações Brasil-Itália na Arte do Segundo Oitocentos: A trajetória artística do pintor Henrique Bernardelli (1880-1890)” (Unicamp, 2006) e uma das organizadoras do livro Oitocentos – Arte Brasileira do Império à Primeira República (UFRJ, 2008).

    Saiba Mais - Bibliografia e Internet

    DAZZI, Camila. “Revendo Henrique Bernardelli”. In: 19&20. Volume II, nº 1, janeiro de 2006. Rio de Janeiro: DezenoveVinte, 2006. (Disponível em www.dezenovevinte.net)

    DOTTIN-ORSINI, Mireille. A mulher que eles chamavam fatal. Textos e imagens da misoginia fin-de-siècle. Rio de Janeiro, Rocco, 1996.

    MARTINS, Ana Paula Vosne. “O caso Naná: representações de gênero no encontro entre texto e imagem no século XIX”. In: História: Questões & Debates, nº 34, pp. 157-174. Paraná: Ed. UFPR, 2001. (Disponível em http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/