Antônio José da Silva, o Judeu, foi morto três vezes. Foi executado pelo garrote, depois queimado e, a seguir, condenado ao esquecimento. Só que essa terceira morte ainda pode ser evitada, nos 300 anos de seu nascimento. O esquecimento seria extremamente trágico para um comediógrafo ao qual tudo foi negado, a começar pela identidade.” A declaração é do jornalista e escritor Alberto Dines, autor de uma ambiciosa biografia do Judeu, Vínculos do Fogo, fruto de sete anos de pesquisas em arquivos e bibliotecas, no Brasil e em Portugal.
Nascido no Rio de Janeiro em 1705, Antônio José da Silva era descendente de judeus que desembarcaram no Brasil no início do século XVII, após serem expulsos da Península Ibérica. Tudo o que ele escreveu foi publicado anonimamente, com exceção de um poema – uma glosa dedicada a Camões – que a Biblioteca Nacional irá reeditar, a partir de um exemplar da edição original, doado por Dines. O poema apareceu com a autoria de “dr. Antônio José da Silva”, embora, na verdade, ele não fosse doutor. Quando o Judeu foi preso pela segunda vez, aparece na lista do auto-de-fé como advogado, mas não chegou a terminar o curso.
– O ramo paterno de sua família não era tão judaizante – diz Dines. – Os tios do pai dele, portanto tios-avós do Antônio José, eram altas figuras do clero, beneditinos. Pertenciam à elite, mas todo mundo sabia que tinham ancestrais cristãos-novos. O pai do Antônio, João Mendes da Silva, advogado formado em Coimbra, era também poeta, escrevia versos sacros. O lado materno, que chegou ao Brasil também no início do século XVII, era um grupo eminentemente judaizante. O bisavô de Antônio José, Miguel Cardoso, era judeu, tão judeu que converteu em sinagoga uma igrejinha abandonada na Rua da Ajuda, onde realizava cultos. Foi denunciado e levado para Lisboa pela Inquisição, mas como era muito rico, poderoso e influente não foi morto. Já a mãe de
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Antônio José era analfabeta, descendente de cristãos-novos rurais. Tinham capelas nas fazendas, mas faziam o que queriam, longe dos olhos de todos. Em todo o cinturão que existe em volta do Rio de Janeiro, inclusive do lado de lá da baía, em São Gonçalo, existiam grandes engenhos com capelas católicas, mas todos dessa área eram cristãos-novos e foram pegos pela Inquisição.
Antônio José da Silva é autor de fábulas burlescas, como Os Amantes de Escabeche e A fábula de Apolo e Dafne, que utilizam a mitologia grega como recurso para parodiar a política de seu tempo. Após uma vida repleta de dificuldades, prisões e torturas, foi condenado à morte pela Inquisição portuguesa em 1739 – não por causa da heresia de escrever comédias, mas por ser cristão-novo. Foi executado no dia 19 de outubro, aos 34 anos, num cadafalso armado no Terreiro do Trigo, em Portugal.– Todas as acusações contra ele são irrisórias, a maioria surgidas durante o encarceramento – afirma Dines. – Por exemplo: alegavam que ele tinha práticas judaicas na prisão e fazia jejuns, e isso é uma bobagem. Ele era um gozador, percebe-se isso em tudo que escreveu. Tinha tradição judaica, mas não era religioso. Então não ia fazer jejuns judaicos no cárcere, jogar fora a carne. Um dado extraordinário: ninguém pegou no processo. Estava impresso e ninguém olhou. Queriam mesmo liquidá-lo. A única coisa que ele fez foi, na hora de ser executado, dizer que queria morrer na lei de Cristo, e não na de Moisés. Por isso ele foi garroteado e não queimado. É o que eu chamo de economia de dor.
Naquele tempo, qualquer revelação inadequada podia ser considerada admissão de culpa e levar à execução. Se alguém dissesse, por exemplo, que jejuou num determinado dia, isso já era uma confissão gravíssima. Um tio de Antônio José, que era padre e tinha concubinas, foi acusado de judaizante. Morreu no caminho de Lisboa, onde seria encarcerado, e foi enterrado no quintal do Santo Ofício, porque, morto, não podia mais ser executado.
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– A família de Antônio José era toda de intelectuais, à exceção da mãe, que era analfabeta, criada num interiorzão. Mas o pai e os tios eram intelectuais, alguns eram médicos. Em Lisboa ele estudou num colégio jesuíta, como era habitual. De lá foi estudar em Coimbra, onde estava o irmão mais velho, que se formou advogado. Antônio José estava já no terceiro ano da Universidade de Coimbra quando mais uma vez foi preso pela Inquisição. A casa deles e dos tios era também freqüentada por Tomás Pinto Brandão, grande satirista da época. Houve uma denúncia, e aí começaram a prender um atrás do outro. Para escapar, as pessoas tinham de denunciar os outros ou fugir. Algumas primas do Antônio José fugiram para a Inglaterra. Ele ficou preso poucos meses e foi muito torturado. As torturas eram todas musculares, como estender o prisioneiro na roda; quando foi solto ele nem podia assinar o termo de soltura, ou alegou que não podia. Alguém assinou por ele.
A Inquisição havia iniciado sua caça aos hereges já em 1704, sob orientação do bispo d. Francisco de S. Jerônimo. Até 1723, no total, 274 pessoas já tinham sido presas, muitas delas parentes de Antônio José. Sua primeira detenção foi aos 7 anos. Ao longo da vida, foi preso e torturado inúmeras vezes, acusado de práticas judaicas, até a condenação à morte.
– Antônio José da Silva foi levado do Rio de Janeiro com 7 anos. Os pais estavam presos e ele ficou um tempo com os parentes paternos, que eram católicos e tinham uma fazendola onde hoje é o Largo da Carioca. Quando os parentes maternos, que tinham sido presos antes, saíram do Santo Ofício, ele foi mandado para Lisboa. Depois os pais de Antônio José foram libertados, a família se reuniu e foi morar em Lisboa, por coincidência no Pátio das Comédias, uma praça diante do teatro público. Na época, existiam poucos teatros públicos. Os ricos faziam teatro em casa, a corte fazia teatro na Corte.
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As obras teatrais de Antônio José da Silva publicadas em vida foram incluídas, sem indicação de autoria, nos dois primeiros volumes do Teatro Cômico Português, publicados em 1734. Mal recebida em seu tempo, por causa da rigorosa censura da hierarquia católica que dominava a Corte de d. João V, a obra do Judeu passou a ser valorizada no século XIX, quando suas sátiras anticlericais e anti-absolutistas começaram a ser apreciadas. Gonçalves de Magalhães chegou a escrever uma peça sobre a vida e a execução do Judeu.
– Em todas as suas peças há algo cinzento, que é típico dos cristãos-novos – avalia Dines. – Eles não podem ser judeus. Há toda uma coisa escondida na obra de Antônio José da Silva, toda a problemática da identidade está fortemente marcada nas suas comédias.
Em vida, Antônio José da Silva foi publicado por amigos impressores: três peças por Antônio Isidoro da Fonseca e oito por Francisco Luiz Ameno. Mas a autoria dessas obras ainda é discutida. Contribuindo para o debate, Dines prepara o lançamento, pela Editora da USP, de El prodígio de Amarante (O prodígio de Amarante), com comprovação de autoria.
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– É uma das obras mais controversas de Antônio José da Silva. Não dá para dizer que é a primeira porque não tem data, mas é uma das primeiras que ele escreveu. Provavelmente nem ele gostava, porque é fraca. Mas é do Antônio José da Silva, e nós vamos publicar. Será uma edição bilíngüe, em espanhol e português, com uma espécie de biobibliografia, uma biografia bibliográfica, explicando uma série de coisas. El prodígio de Amarante (O prodígio de Amarante) não foi concebido originalmente para marionetes, mas para atores e, por isso, foi escrito em espanhol, porque não havia atores portugueses para fazer. Em geral, as companhias de teatro eram todas vindas da Espanha, e era muito comum intelectuais portugueses dominarem o espanhol, às vezes o latim também, sobretudo no círculo que Antônio José passou a freqüentar. Inclusive porque os cristãos-novos eram obrigados a fugir muito freqüentemente. Quando a coisa apertava, eles iam para uma espécie de fronteira nordeste junto à Espanha.
Segundo Dines, o teatro de marionetes foi a saída que Antônio José encontrou para fazer teatro popular:
– Antônio José é o pai do teatro popular. No teatro de marionetes, ele podia criar situações que no teatro grande seriam impossíveis. Uma tempestade, uma viagem, o mar... Numa companhia de teatro de marionetes, às vezes, com quatro atores ele fazia uma peça de 20 personagens. O teatro de marionetes era muito econômico, e por isso ele foi fazer teatro no Bairro Alto, que é um bairro popular. Ele fazia um teatro popular com temas clássicos. A sua primeira peça foi uma adaptação de Dom Quixote. Depois fez a Esopaida, que conta a vida de Esopo, uma peça política muito interessante. Então seguiu para a mitologia grega. Sua peça O Anfitrião, que foi encenada em 1736, com toda a certeza desagradou o círculo palaciano. Era uma crítica ao rei que tudo pode. O rei devasso, o d. João V, que vivia nos conventos...
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Dines pretende também recuperar a credibilidade de Barbosa Machado, que analisou a obra de Antônio José da Silva num verbete da Biblioteca Lusitana, publicada, em 1741.
– Durante muito tempo, Barbosa Machado foi desacreditado por um pecado que cometeu e que nem chega a ser pecado: não informar como o Judeu morreu – afirma Dines. – É preciso que se pergunte por que ele omitiu que Antônio José da Silva morreu executado pela Inquisição... Pode não ter sido um pecado, talvez ele estivesse protegendo outras pessoas. Barbosa Machado era próximo da família de Antônio José da Silva, logo o que ele publicou tinha toda a credibilidade. Só porque, num dos verbetes, ele não disse que o Judeu foi executado pela Inquisição, negou-se crédito a tudo o que ele sabia, e que era muito interessante. Barbosa Machado era um homem do Estado, mas teve a dignidade de citar outros casos de Inquisição. Só não citou casos contemporâneos porque não podia confrontar as autoridades eclesiásticas, ou o livro não sairia. Mas isso não o desqualifica enquanto biógrafo.
A terceira morte do Judeu
Alberto Dines