Em março de 1555, o padre jesuíta Roberto Claysson recebeu uma carta de Inácio de Loyola (1491-1556) na qual era recriminado pelo excesso de ornamento e esmero em sua escrita. Em toda a sua vida, o Superior-Geral da Ordem escreveu mais de 7.000 cartas, e em muitas delas advertia sobre a forma, o estilo e o conteúdo da correspondência produzida pela Companhia. A importância dada à arte de escrever cartas está patente já nos primórdios da Ordem.
Desde os tempos de noviço até o exercício dos principais cargos, passando pelos ministérios e missões, a arte epistolar sempre encontrou funções relevantes a cumprir. A propósito do período de “provação”, as Constituciones – documento que regula o funcionamento da Ordem – determinam que, durante a refeição, deve-se ler livro pio, pregar ou “ler cartas de edificação”, isto é, que ajudem a conduzir o leitor à virtude. Dessa forma, o alimento se estenderia à alma.
AsConstitucionesobrigam os missionários a manter o “Superior da Companhia” informado por carta dos êxitos e reveses da missão, a fim de que soubessem se era conveniente permanecer em uma missão ou dirigir-se a alguma outra. O documento também determina que o Superior dê instrução escrita aos enviados em missões, indicando-lhes modos e meios de proceder para alcançar seus objetivos. Ele deve ainda se comunicar por cartas para que possa aconselhar com presteza a ação mais conveniente.
Essa correspondência entre superiores e inferiores, segundo as Constituciones, também “ajuda na união dos ânimos”, a fim de que saibam uns dos outros, recebam novas informações das várias partes do mundo em que se encontram e obtenham consolação mútua em Cristo. Autoridades eclesiásticas locais ou reitores deveriam ainda escrever a cada semana ao Provincial – o representante da Ordem em uma província – que, por sua vez, escrevia ao Geral, a maior autoridade da Ordem no mundo. No caso de estarem “em reinos diversos”, as cartas deviam ser enviadas ao menos uma vez por mês, assim como as respostas. No início de cada quadrimestre, devia-se escrever uma carta em vulgar e outra em latim ao Provincial, apenas com “coisas de edificação”, cujas cópias eram enviadas ao Geral e a outros da província e fora dela.
A presença ostensiva da carta nas Constituciones evidencia pelo menos três aspectos decisivos do seu emprego jesuítico: a informação; a reunião de todos os irmãos num corpo orgânico; e, enfim, o impulso da experiência mística. O primeiro aspecto fica claro quando se sabe que a correspondência era muitas vezes o único meio de relato dos fatos ocorridos nas várias frentes da ação jesuítica espalhada pelo mundo. Quanto à união dos jesuítas, esta se manifesta quando os acontecimentos reforçam a rede espiritual dos irmãos dispersos por todo o globo. Contudo, este corpo, no qual todos agem como um só, apenas se realiza completamente quando se traduz como experiência mística, isto é, como êxtase de participação na vida espiritual. Neste terceiro ponto, as cartas enviadas de todas as partes do mundo são tão particulares como exemplares; são ao mesmo tempo referência histórica única e alegoria espiritual comum.
As cartas, portanto, atualizam a missão apostólica, e quanto mais benfeitas, mais incendeiam o escritor e o leitor numa mesma febre de fé, que os irmana em experiências devocionais. Os padres chegaram a fazer observações sobre os efeitos das cartas de Santo Inácio, autor de uma vastíssima correspondência. Dizem que elas produzem “gozo e alegria” incontáveis, deixando “os irmãos banhados em alegria de ouvir” e que, nelas, mesmo uma só palavra poderia consolá-los muito. Já a menor demora em recebê-las é como “um castigo” que os priva “do leite da consolação costumeira”.
Por isso, convém examinar mais de perto as cartas escritas por Santo Inácio. Em correspondência de dezembro de 1542, dirigida ao padre Pedro Fabro, então missionário na Alemanha, Inácio lhe comunica a sua determinação de que, ao escrever, os padres fizessem uma carta principal, que “se pudesse mostrar a qualquer pessoa”, e especialmente a autoridades de Roma, que sempre manifestavam muito interesse em conhecê-las. Especifica ser obrigatório que essa carta principal “guardasse ordem”, não trouxesse “coisas impertinentes” e que desse edificação a quem a lesse; ela deveria ser escrita tendo em mente o “serviço de Deus e aproveitamento do próximo”. Nessa perspectiva, o estatuto da carta é o mesmo de outras “obras espirituais”, como “sermões, confissões, exercícios”. Inácio então reserva para os “anexos” da “carta principal” os comentários, como os feitos sobre a saúde corporal dos missionários e os negócios mais particulares ou atinentes à vida interna da Companhia.
As determinações inacianas obrigam ainda que a carta principal seja escrita uma vez e depois reescrita, com correções, “fazendo de conta que todos a hão de ver”. A norma inscreve, portanto, no próprio ato da escrita da carta, a consciência do seu efeito nos ânimos dos seus leitores. E alerta: “o que se escreve é ainda mais de cuidar que o que se fala”, sobretudo “porque a escrita fica e dá sempre testemunho, e não se pode assim bem emendar ou glosar tão facilmente como quando falamos”. Já para os anexos, admite que cada um escreva “à pressa da abundância do coração”, com ou sem ordem, e ainda “alargando-se” à vontade. Esse transbordamento não é permitido na carta principal, que é sempre para “proveito espiritual e consolação das almas”. Inácio ainda chama a atenção para o aspecto trabalhoso dessa prática de reescrever, dando exemplo de si mesmo, que escreve a todos, enquanto a maioria deles tem apenas que escrever para ele. Menciona especificamente que, no momento em que escreve ao padre Fabro, acaba de enviar 250 outras cartas, a todas as partes do mundo.
Em carta ao padre Gaspar Berze, missionário na Índia, Inácio escreve, em fevereiro de 1554, por intermédio de seu secretário, o padre Polanco, pedindo-lhe que atenda autoridades de Roma que desejam ler sobre a geografia das regiões, as estações e outras curiosidades várias que pareçam extraordinárias, como “animais e plantas não conhecidos”. Justifica o pedido dizendo que não há mal em tal tempero, próprio “para o gosto de alguma curiosidade que costuma haver nos homens”.
Na carta ao padre Roberto Claysson, de 1555, na qual recrimina o estilo empregado pelo padre, Inácio afirma que uma coisa é a “eloquência, atrativo e gala da linguagem profana”; outra, é aquela que cabe ao religioso, para quem o estilo conveniente deve assemelhar-se ao uso dos adornos recomendáveis para uma “matrona”, que sempre deve “respirar gravidade e modéstia”. O modo de expressão não deve ser jamais exuberante e juvenil, e quando tiver de ser copioso, que o seja “mais por abundância de ideias que de palavras”.
O decoro proposto por Inácio para a escrita jesuítica é fundamentado na ideia de que a virtude se opõe às “palavras inchadas de orgulho”. Assim, os ornatos da elocução exigem sempre limites de aplicação e submetem-se a uma ordem, gramaticalmente correta, ajustando a seriedade do assunto à simplicidade das palavras. Com esse cuidado, seria possível garantir a fidedignidade do relato e a verdade da fé.
Enfim, se é correto o que aqui vai dito, será pouco adequado tomar as cartas jesuíticas como veículo transparente de informação dos acontecimentos históricos – como tantas vezes se fez, e se faz.
Alcir Pécoraé professor de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas e autor de “A Arte das Cartas Jesuíticas do Brasil” in Máquina de Gêneros (Edusp, 2001).
Saiba Mais - BibliografiaABREU, Capistrano, CABRAL, Valle (orgs). Cartas Jesuíticas 1 e 2. São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Editora Itatiaia, 1931.
HANSEN, João A. (org).Antônio Vieira. Cartas do Brasil. São Paulo: Hedra, 2003.
LEITE, Serafim. Breve História da Companhia de Jesus no Brasil (1549-1760). Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, 1993.
LOYOLA, Santo Inácio de. Obras Completas. Madri: La Editorial Catolica, Biblioteca de Autores Cristianos, 1982.
A união faz a carta
Alcir Pécora