A velha novidade

Bruno Garcia

  • Reunião com Geert Wilders, líder do Partido para Liberdade, na Holanda (WIKIMÉDIA COMMONS/FOTO MINISTER-PRESIDENT RUTTE)

    Há quem diga que a grande missão do FPÖ, o Partido da Liberdade da Áustria, é provar que Hitler era alemão e Beethoven, vienense. Algo que, por mais irônico que pareça, soa bastante coerente com o conjunto de teorias que seus líderes têm sobre a história do país. Algumas posições são pitorescas, como o endosso da teoria de que a Áustria foi a primeira vítima do nazismo, e não o primeiro colaborador – mesmo que a anexação ao Terceiro Reich tenha sido aprovada de forma esmagadora num plebiscito em 1938. O fato é que a retórica nacionalista, verossímil ou não, tem tido boas respostas nas urnas.

     
    O FPÖ tornou-se o partido de extrema-direita mais bem-sucedido na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. No ano 2000, para assombro do continente,  conquistou 26,9% dos votos, superando o Partido Popular Austríaco (ÖVP), que se viu forçado a aceitar uma coalizão. Pela primeira vez o discurso extremista e xenófobo chegava ao poder em uma democracia da União Europeia. Os principais países do bloco agiram rápido e pediram para que Jörg Haider, líder do partido, tivesse a candidatura a chanceler retirada. A porta-voz do governo francês, Catherine Colonna, afirmou que o partido de Haider era inspirado por uma ideologia oposta aos valores do humanismo que fundam a União Europeia. 
     
    O receio de franceses, assim como dos demais membros do bloco europeu, ia além da política austríaca. A vitória do FPÖ dava esperança para partidos e movimentos análogos na Europa que, até então, lutavam apenas para se manter como coadjuvantes com algum destaque. A despeito do muito barulho que causavam, os novos partidos de extrema-direita surgidos no início da década de 1980 raramente conquistavam algo relevante nas eleições. O Partido Nacional Britânico (BNP), criado por John Tyndall em 1982, conseguiu chamar a atenção apenas em 1993. Mesmo assim, seu grande mérito foi conquistar um único assento no conselho local de Tower Hamlets, em Londres. Na França, A Frente Nacional foi um pouco além: os 14,4% conquistados por Jean Marie Le Pen nas eleições presidenciais de 1988 impressionaram o país, mas não foram capazes sequer de levá-lo ao segundo turno.
     
    Segundo o historiador francês Jean-François Sirinelli, a emergência desses partidos a partir da década de 80 se deve a três razões principais. A primeira, a desaceleração do crescimento econômico na Europa Ocidental. As taxas, que chegavam a 7% nos anos 50 e 60, impulsionando uma política de pleno emprego, começaram a cair até chegar a 1% nos anos 70. A principal consequência foi um severo processo de desindustrialização e o consequente aumento do desemprego. Foi um período de grande atrito entre Estado e sindicatos, uma tensão que fez com que, na Inglaterra, a primeira-ministra Margaret Thatcher reduzisse o poder de influência dessas organizações. A segunda razão diz respeito ao surgimento da União Europeia. Construída ao longo da década de 80 e confirmada pelo Tratado de Maastricht em 1992, a entidade dividiu a opinião pública no interior dos países. Setores políticos zelosos de suas identidades nacionais suspeitavam que o funcionamento de uma organização transnacional interferisse de forma nociva nos seus assuntos internos. A terceira, e talvez a razão mais presente na retórica desses partidos, é a questão da imigração. Sirinelli lembra que o problema não é exclusivamente relacionado ao crescimento do volume de imigrantes. Até então os fluxos migratórios europeus vinham, em grande parte, de outros países do continente, especialmente do leste. Foi o crescimento do número de imigrantes provenientes da África, sobretudo de muçulmanos, que alimentou a retórica hostil. 
     
    Os modernos partidos de extrema-direita europeus, como a Frente Nacional em campanha, surgiram no início dos anos 1980. (WIKIMÉDIA COMMONS-MARIE-LAN NGUYEN)
     
    A despeito do contexto em comum, as origens de cada partido, dentro desse conjunto de vozes nacionalistas, são bastante distintas. Existem aqueles que surgiram de um discurso nacionalista tradicional, fundamentado em experiências prévias, como o FPÖ. O principal partido da extrema-direita austríaca cresce através da reabilitação de uma memória nacional vinculada à experiência da Segunda Guerra Mundial. Mas há partidos, como o Jobbik, na Húngria, com origem num discurso racial, outros que emergem por defesa a regionalismos, como a Liga Norte, na Itália, e até os que não têm pudor em lançar mão de uma simbologia neonazista, como o Chryssi Aygi (Aurora Dourada), na Grécia.  
     
    Todos partilham, em maior ou menor grau, do que o sociólogo português José Pedro Zúquete chamou de quatro pilares ideológicos. Os dois primeiros, de caráter afirmativo: a defesa do povo e da nação. Aqui, se encontra implícita a ideia de uma dicotomia entre elites, vistas como uma casta política descomprometida com a coletividade, e o povo, vítima de maquinações voltadas à perpetuação de uma certa oligarquia. Os outros dois pilares, fundamentados por um tom de ameaça, são a islamofobia e o discurso eurocético. O resultado, em geral, é uma narrativa nacionalista que converte esses partidos na última trincheira contra as ameaças externas. A globalização é vista como um projeto voltado a erradicar diversidades locais em nome da livre circulação de mercadorias. É preciso defender o povo, a nação, sua cultura, a tradição e a integridade dos imigrantes, sobretudo os muçulmanos, cujo número crescente seria culpa de uma política permissiva da União Europeia que, além de propagar “a farsa do multiculturalismo”, teria reduzido a soberania e a capacidade de os Estados se protegerem. 
    O partido Aurora Dourada, da Grécia, tem no seu símbolo e retórica referências ao nazismo, como mostra o panfleto (REPRODUÇÃO)
     
    Em momentos de crise econômica, os debates sobre delimitação de fronteiras identitárias e o lugar do imigrante dentro das sociedades são agravados pelo desemprego e tomados, facilmente, como bandeiras políticas a favor de um conservadorismo radical. Mas se engana quem pensa que o discurso em defesa de valores tradicionais implique uma ideologia envelhecida ou estática. A permanência e o crescimento da extrema-direita nos debates públicos sugerem uma enorme mobilidade ideológica, capaz de se adaptar a diferentes contextos. No esforço para desassociar-se do fascismo da década de 30, partidos e movimentos populares renovaram tanto o discurso quanto suas bases. Na Inglaterra, a English Defence League, movimento popular nacionalista, tem em suas divisões uma ala judaica. Na Holanda, o Partido para Liberdade (PVV) de Geert Wilders defende o direito ao aborto e à eutanásia. Contra o que chama de um Islã intolerante e retrógrado, o partido se apresenta como defensor dos direitos das mulheres e da emancipação dos homossexuais. Como afirma Zúquete, “é difícil imaginar um outro político mais à direita, oferecendo uma resolução parlamentar para permitir que soldados homossexuais usem o seu equipamento militar na parada gay”.
     
    A maior vitória da extrema-direita não pode ser medida apenas por resultados, que permanecem discretos. Mesmo minoritários, os grupos políticos associados ao discurso extremista não precisaram virar situação para que grande parte de suas demandas entrasse em pauta. Políticos de centro-direita, como o primeiro-ministro do Reino Unido David Cameron, assumem como legítimos os pontos levantados por seus rivais mais extremos. Em outubro de 2011, Cameron lançou uma campanha em que dizia ser dever de todo inglês denunciar imigrantes ilegais. A naturalidade com que foi recebido esse chamado de combate aos imigrantes como um dever cívico serve como exemplo de deslocamento da pauta, antes restrita a extremistas, para o centro. Uma mudança  que, mesmo silenciosa, se mostra muito mais significativa do que a vitória ou os cinco anos no poder do FPÖ na Áustria.  
     
     
     
    Bruno Garcia é pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional e autor da dissertação “Cuba and Human Rights: Between US and EU support and pressure” (Masarykova Univerzita, República Tcheca, 2009).
     
    Saiba Mais: 
     
    ZÚQUETE, José Pedro. “A Europa, a Extrema-Direita, e o Islão”. Locus: Revista de História, vol. 18, nº 1, p. 209-240, 2012. Disponível em: http://www.editoraufjf.com.br/revista/index.php/locus/article/viewFile/1996/1441
    MOREAU, Patrick. “The Victorious Parties – Unity in Diversity?”. In: Backes, Uwe & Moreau, Patrick (orgs.). The Extreme Right in Europe: Current Trends and Perspectives. Oakville, CT: Vandenhoeck & Ruprecht, 2012. p. 75-148.