A verdade dói

Agnes Alencar

  • Os arquivos têm ares tenebrosos para alguns de nós, historiadores da geração Google, acostumados a documentos digitalizados e a velozes ferramentas de buscas. Ao longo da graduação, poucas vezes estive em um arquivo. Naquele momento da trajetória acadêmica, não era imperativa essa necessidade. Foi no mestrado que minhas aventuras arquivísticas se intensificaram. Soubera por um anúncio coletivo que um professor do Departamento de História da PUC-Rio estava coordenando um braço da pesquisa da Comissão Nacional da Verdade (CNV) juntamente com o Departamento de Direito, e buscava pesquisadores dispostos a fazerem parte do grupo.

    Em uma pequena sala de reuniões na Secretaria de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, no prédio da Central do Brasil, ao lado do Quartel-General do Comando Militar do Leste, tivemos o primeiro encontro com a documentação: três mestrandos em História e outros três em Direito, seis olhares completamente diversos e algumas metas em comum. Em caixas-arquivos de papelão estavam diversas fichas de pessoas que haviam pedido reparações ao Estado por prisões perpetradas pela Polícia Militar no período de 1964 a 1982. Não havia nenhuma organização ou lista para consulta, até pelo sigilo que a documentação impunha. Cabia a nós verificar ficha por ficha em busca do que nos fora pedido pela coordenação da CNV: provas testemunhais e documentais de que as torturas começaram em 1964; indícios de possíveis prisões em massa; evidências da existência de navios-prisões; e os critérios para a efetuação de prisões nos anos entre 1964 e 1966.

    Toda aquela documentação representava um desafio não apenas pelas poucas vezes em que estive em arquivos, mas sobretudo por serem muito distintas do que estou acostumada a pesquisar. Passei muitas tardes naquela sala, e aos poucos o medo do arquivo se dissipou. Ao longo de mais de seis meses ouvi as vozes que chegavam a mim através daqueles processos e dos documentos a eles anexados: ordens de prisão, fichas policiais, depoimentos, exames médicos. Muitas histórias que se contavam e se cruzavam ali. Algumas estavam sendo escutadas pela primeira ou segunda vez. Os navios-prisões, as prisões em massa no estádio Caio Martins, em Niterói, o encarceramento na Ilha das Flores, em São Gonçalo, as torturas, os traumas.

    Como historiadora e pesquisadora meu trabalho era metódico, organizado. Cabia-me entender aquelas histórias e alocar todas as que aconteceram no período definido. Eu precisava indicar o porquê da prisão daqueles indivíduos e, quando presos, se eram ou não torturados: era necessário investigar se a máquina da tortura começara no momento da instauração do regime, ou apenas com o AI-5, em 1968, como muitos alegam – a violência do Estado seria, nesta concepção, resposta à violência primeira da luta armada. Meu grupo encontrou todas as evidências numéricas necessárias para sustentar a tese de que a tortura começou logo após a instauração do regime, em 1964.

    O trabalho da pesquisadora terminava ali, no número. Mas quantas foram as vezes nas quais eu fiquei até mais tarde com um processo na mão e lágrimas nos olhos! Emocionei-me. E penso que talvez este seja um privilégio do ofício do historiador: sentir seu objeto, comover-se e ser transformado pelo que estuda.

    Agnes Alencar é pesquisadora da RHBN e trabalhou na Comissão Nacional da Verdade de março a setembro de 2013.