A verdade nua?

Mauro de Bias

  • Cena do filme 'O rei pasmado e a rainha nua'Um dia, o rei decide ver a rainha, sua esposa, nua. Pronto. Estava armada a confusão. O monarca é impedido por um desesperado jesuíta que carrega um crucifixo e tenta dissuadi-lo de cometer tal “pecado mortal”. A cena acontece no filme “O rei pasmado e a rainha nua”, de Imanol Uribe, sátira de 1991 que retrata a influência da Igreja Católica, representada pela Companhia de Jesus, sobre a corte e os costumes do século XVII. Por sua forte atuação nos países latinos e na colonização da América e da África, os jesuítas foram representados sob várias óticas no cinema.

    Os filmes apresentam os freis inacianos de diversas formas, e historiadores veem de maneira positiva essa variedade, mesmo que ela não se traduza em um retrato perfeito de personagens e fatos. Ronaldo Vainfas, professor da Universidade Federal Fluminense, defende a liberdade dos roteiristas e diretores para criar, adaptar e romantizar situações. “Muitos são baseados em romances que já misturam história e ficção. É o caso de ‘Hábito negro’ [1991], sobre o jesuíta que esteve no Canadá, inspirado em livro de Brian Moore. E também de ‘O rei pasmado e a rainha nua’, baseado em romance de Gonzalo Torrente”, diz ele, destacando que a sátira no filme espanhol é acentuada demais, já que a vontade do rei de ver a rainha sem roupa não seria condenada pela Igreja, uma vez que eram casados.

    Vainfas diz ainda que o senso comum costuma ser retratado no cinema, o que pode gerar deturpações. “Muitas vezes a ‘romantização’ exprime uma certa memória que celebra ou condena personagens ou fatos históricos. É muito importante desconstruir as memórias que muitos filmes veiculam”, alerta. Como a fantasia e a criatividade dos autores têm forte presença nas tramas, a professora Laura de Mello e Souza, da Universidade de São Paulo, acredita que a representação fiel é uma utopia, e que, mesmo para os historiadores, é difícil saber exatamente como os fatos aconteceram. Isto, portanto, garante a liberdade de criação com base no que está de fato documentado. Ela afirma ainda que não importa a romantização dos personagens se a obra trouxer eventos históricos bem fundamentados.

    Assim como Vainfas, Laura defende a ficcionalização. “É isso que distingue o filme histórico do documentário. No caso de ‘Hábito negro’, o problema da incomunicabilidade, ou da dificuldade de diálogo entre culturas fundamentalmente distintas, é muito bem colocado. ‘A missão’ [1986], por sua vez, expõe muito bem dilemas e conflitos próprios de processos distintos de ‘ocidentalização’, como o colonizador ibérico e o catequético jesuítico, e mostra ainda os limites que se colocam à catequese”, analisa Laura. “O rei pasmado”, segundo ela, também mostra um bom retrato da disputa por poder na Espanha do século XVII diante de uma crise política, econômica e social. “A fundamentação histórica é rigorosa, os personagens são verossímeis e a liberdade criativa não deforma o que é essencial”, diz a pesquisadora, acrescentando que mesmo o exagero satírico ajuda a compreender o momento histórico.

    Cena de 'Hábito negro'Os jesuítas também já tiveram passagem pela televisão, como no caso da minissérie “A Muralha” (2000). Mauro Alencar, especialista em teledramaturgia brasileira e latino-americana, concorda com Laura. “‘A Muralha’ encena o descaso e os desmandos de Portugal no Brasil e mostra como os jesuítas protegeram os índios do assédio de piratas e bandeirantes. Não podemos dizer se o que foi visto era ou não uma imagem fiel dos jesuítas, já que não convivemos com eles”, afirma o pesquisador. “O que temos são fontes históricas que nos relatam fragmentos de uma realidade que se perdeu. A partir destas pistas, tenta-se recriar o período estudado. Talvez esta ‘imagem fiel’ seja uma eterna incógnita, impossível de se alcançar”, diz Alencar.

    Mesmo diante das adaptações, os especialistas acreditam que os filmes são um bom recurso para os professores de História complementarem o ensino. O consenso, no entanto, é que a presença do educador é indispensável para levar os alunos a debater, refletir e criticar as obras. Eunícia Fernandes, professora de História da PUC-Rio, enfatiza a necessidade de uma análise crítica. “Não vejo a possibilidade de você ouvir dizer que há um filme bacana sobre ditadura militar e colocá-lo para uma turma assistir como se ele fosse 'a verdade'. Isso não existe”, alerta. “Mesmo que o professor tenha profunda sintonia com a mensagem transmitida pela película, apagar a existência do diretor, do roteirista, do financiamento e dos porquês da existência do filme não é atitude de historiador”, afirma.

    Laura de Mello e Souza se diz muito favorável ao uso de bons filmes históricos em sala e cita “A missão”, “O rei pasmado” e “Hábito negro” como alguns dos que ela usa com frequência com seus alunos. Na sua opinião, as tramas são bem contextualizadas no tempo e trazem questões históricas relevantes com participação ativa da Companhia de Jesus, mas adverte: “O professor tem que conhecer bem o período sobre o qual ele diz respeito, para ter senso crítico”. Ela critica roteiros exagerados e cita “Carlota Joaquina, princesa do Brazil” (1995) como um mau exemplo. Já Marcus Venicio Ribeiro, professor do Centro Educacional Anísio Teixeira, gosta de usar os excessos do filme nacional para provocar o debate entre os alunos. “É preciso considerar que é uma sátira, sem compromisso com a interpretação histórica. É uma criação apenas para criticar”, reconhece. E conclui: “É claro que você tem que ter o professor ao lado para explicar e dizer o que é verdade e o que está exagerado. Não tenho dúvida de que um filme benfeito enriquece a aula”. (Mauro de Bias)

     

    Saiba Mais - Filmes

    “RepúblicaGuarani”, de Silvio Bach (Brasil), 1982.

    “Amissão”, de Roland Joffe (Inglaterra), 1986.

    “Hábitonegro”, de Bruce Beresford (EUA), 1991.