- Maria Magdalena Pocha Lamadrid não esquece a data: era uma quinta-feira de agosto, ano de 2002. Prestes a pegar o avião de Buenos Aires para o Panamá, onde iria a uma conferência, ela tirou o passaporte da bolsa e entregou ao funcionário do aeroporto. Dali em diante, foram seis horas de confusão e injustiça. A polícia foi chamada e Pocha acusada de estar com documentação falsa. “Eles me perguntaram se eu falava castelhano, se eu era peruana, e diziam que eu não podia ser argentina de verdade, porque eu era negra”, recorda.Cidadã argentina, descendente de escravos africanos e com cinco gerações de antepassados no país, Pocha teve sua história estampada na primeira página do Clarín, o principal jornal da Argentina. Pelo menos duas coisas ficavam evidentes: a invisibilidade dos negros e o forte racismo em território nacional. Ela já sabia de tudo isso, e o caso só fortaleceu sua atuação à frente da África Vive, organização que presidia e cujo objetivo é justamente reivindicar a existência atual dos afro-argentinos e suas contribuições para a história e a cultura do país.A tarefa não é fácil. Ao contrário do que ocorre em outros países da América Latina, entre os argentinos a miscigenação não foi historicamente exaltada. Pelo contrário: a nação enxerga a si própria como uma das mais europeias e brancas do continente. Essa imagem idealizada é transmitida nas escolas, em boa parte da literatura e na vida cotidiana. Faz parte do senso comum a afirmação de que “na Argentina não há negros”. Por isso, os afrodescententes estão habituados a ouvir a irritante pergunta: “De onde você é?”.Ainda hoje se enfatiza o “desaparecimento” dos afro-argentinos em fins do século XIX e a irrelevância de suas contribuições à cultura e à genética locais. O discurso se apoia em dados oficiais. Em 1810, o censo realizado em Buenos Aires apontava que 30% da população local eram negros. Nas décadas seguintes, o percentual despencou, até chegar, no censo de 1887, a apenas 1,8%. Para explicar esse abismo, políticos e intelectuais que ajudaram a construir a ideia de uma nação argentina branca costumavam usar indicadores como a abolição do tráfico de escravos em 1813 e as altas taxas de mortalidade dos afrodescendentes – reforçadas pelas guerras que sacudiram o país durante boa parte do século e pela epidemia de febre amarela de 1871.Estudos recentes mostram que esses argumentos não são definitivos. O historiador americano Reid Andrews aponta que, em números absolutos, a população afro-argentina manteve-se estável durante quase todo esse período. Jornais negros do final do século XIX evidenciavam uma vida social ativa entre os afrodescendentes. E, apesar de expressarem preocupação com a pobreza, não há qualquer menção sobre o “desaparecimento” desse grupo.Segundo Andrews, há outros aspectos que explicam a redução drástica nos números do censo. O sub-registro nesses levantamentos – próprio de uma população marginal – veio acompanhado de um processo de suburbanização: os afro-argentinos deixaram os bairros centrais da cidade para viver em áreas mais pobres e periféricas, o que aumentou sua invisibilidade social. Além disso, o acelerado processo de mestiçagem e uma mudança nas categorizações raciais fizeram com que muitos negros claros passassem a ser considerados brancos. Eles se tornaram cada vez mais numerosos a partir da segunda metade do século XIX, quando a política econômica do país, baseada na agroexportação, incentivou uma onda de imigração europeia para suprir a mão de obra e substituir a população miscigenada, considerada inferior. O impacto dessa política causou a duplicação da população branca e europeia. Entre 1869 e 1895, ela saltou de 1,8 milhões para 4 milhões. Em 1914, os imigrantes vindos da Europa já representavam cerca de 30% da população argentina, índice que ajudava a reforçar a predominância do imaginário europeu no país americano.Nas últimas décadas esse cenário vem mudando, com o crescimento significativo de manifestações culturais afro-americanas. Desde 1983, com o fim da ditadura e o novo contexto democrático, imigrantes afro-uruguaios, afro-brasileiros, afro-cubanos e, mais tarde, africanos, trazem na bagagem sua religiosidade, suas músicas e danças, que influenciam fortemente a cultura portenha.Foi nesse clima que os afro-argentinos, invisíveis por quase um século, começaram a reivindicar seus direitos. Em 1997, com o apoio de uma rede internacional de organizações de militância negra, Pocha Lamadrid fundou o grupo África Vive. A ONG surgiu com a intenção de romper a invisibilidade dos negros na Argentina, auxiliá-los em seus direitos sociais e reivindicar seu papel na história nacional. A iniciativa era pioneira e funcionou como uma mola propulsora: dali para frente, vários outros grupos de ativistas políticos afrodescendentes começaram a se organizar.O cenário para a existência e a multiplicação desses grupos ficou ainda mais favorável nos anos 2000, quando, em Buenos Aires, cresceram propostas de uma nova visão multicultural da cidade. A antiga imagem oficial homogeneizante vem sendo substituída aos poucos pela de um mosaico de etnias e culturas, o que valoriza a diversidade étnica. Sucessivos governos portenhos passaram a organizar “Feiras de Coletividades” e os dias “Buenos Aires Celebra... (algum país)”, apoiando ainda festividades étnico-religiosas – que no passado se restringiam às culturas espanhola e italiana.Apesar de não acabar subitamente com os preconceitos, a mudança abre brechas para que os governos sejam mais receptivos a propostas de atividades culturais que exaltam a diversidade étnica – e que antes não encontravam lugar na cidade “branca e europeia”. Um exemplo disso aconteceu em 2000, quando a Defensoria do Povo da Cidade de Buenos Aires ofereceu recursos para que a África Vive realizasse um baile na Casa da Suíça, antiga sede do Shimmy Club, última associação recreativa afro-argentina. O clima foi de reencontro: famílias negras, que até a década de 1970 reuniam-se ali em bailes de carnaval, voltaram a celebrar juntas no salão. Em 2005, os militantes negros se reuniram com representantes do Banco Mundial e do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) para realizar um teste a fim de avaliar a inclusão de uma pergunta sobre a afrodescendência no recenseamento da população. Apesar de discreta, a iniciativa possibilitou uma projeção nacional para as questões afrodescendentes por parte do Estado.No mesmo ano, o governo aprovou o Plano Nacional Contra a Discriminação, com uma seção específica voltada para negros, cuja coordenação foi designada ao Instituto Nacional contra a Discriminação, Xenofobia e o Racismo (Inadi). Em 2010, veio uma das maiores conquistas do movimento: o Censo Nacional de População, Famílias e Habitação incorporou pela primeira vez uma pergunta sobre afrodescendência. Por ocasião do Ano Internacional dos Afrodescendentes, celebrado pela ONU em 2011, vários ministérios argentinos promoveram atividades comemorativas. No ano passado, o próprio país definiu sua data oficial para celebrar o “Dia dos Afro-argentinos e da Cultura Afro”: 8 de novembro – em memória ao dia em que faleceu, em 1847, María Remedios del Valle, afrodescendente que lutou nas guerras de independência.O movimento negro argentino comporta hoje grupos diversos, incluindo em suas fileiras os afro-argentinos descendentes de escravizados, os membros da comunidade cabo-verdiana – com quase duas gerações nascidas no país – imigrantes afro-americanos – numericamente pequenos mas importantes por seu impacto sobretudo na cultura juvenil – e imigrantes africanos mais recentes.Se, por um lado, os militantes estão conseguindo chamar a atenção do Estado, o maior desafio ainda é interno. Há uma enorme parcela de afro-argentinos que precisa ser sensibilizada para se reconhecer como tal, fortalecendo o movimento e a pressão pela ampliação de seus direitos.Alejandro Frigerio é pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet) da Argentina e professor da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso). Eva Lamborghini é professora da Universidade de Buenos Aires.Saiba MaisFRIGERIO, Alejandro Frigerio, LAMBORGHINI, Eva & MAFFIA, Marta. “Afrodescendientes y Africanos en Argentina”. Aportes para el Desarrollo Humano en Argentina 5. PNUD, 2011. Disponível online em: http://www.alejandrofrigerio. com.ar/publicaciones/movimientos_afro/Frigerio_Lamborghini_AfroArg_Africanos_PNUD_2011.pdf.GELER, Lea & GUZMÁN, Florencia. Dossiê “Sobre esclavizados/as y afrodescendientes en Argentina: nuevas perspectivas de análisis”. Boletín Americanista, 63, Universidad de Barcelona, 2011. Disponível online em:http://www.raco. cat/ index. php/BoletinAmericanista/issue/view/18747/showToc.
A volta dos afro-argentinos
Alejandro Frigerio e Eva Lamborghini