A voz da arquibancada

Bernardo Buarque de Hollanda

  • “A Torcida Organizada/ Derruba a Cachorrada!”, cantaram os torcedores do Flamengo, em outubro de 1968. Era uma crítica furiosa aos diretores do clube, mas não se restringia ao jogo disputado no Maracanã, pois ecoava um brado dos estudantes nas passeatas estudantis que colocavam em ebulição o Centro da cidade: “O Povo Organizado/ Derruba a Ditadura!”.
     
    Ser jovem, naquela conjuntura, era uma posição dotada de grande poder simbólico, em boa parte construído e valorizado pela mídia nacional e internacional. No Rio de Janeiro, houve um veículo impresso que soube incorporar essa onda ao universo do futebol, influenciando até o surgimento de torcidas organizadas. A partir de 1967, o Jornal dos Sports (1931), conhecido como “o Cor-de-Rosa”, passou a se autoproclamar “O jornal do Poder Jovem”.
     
    O mais vendido periódico brasileiro de cobertura esportiva vivia uma fase de reestruturação: no ano anterior morrera seu fundador, Mário Rodrigues Filho. Irmão do dramaturgo Nelson Rodrigues e importante personagem no cenário futebolístico carioca, o jornalista ficou conhecido na imprensa por defender o profissionalismo no futebol e a admissão de jogadores negros e operários nos grandes clubes do Rio, ao longo dos anos 1930. Seu único herdeiro, Mário Júlio Rodrigues, assumiu o Jornal dos Sports em um contexto de crise financeira, repressão militar e nova tragédia familiar – o suicídio da mãe, Célia Rodrigues, um ano após a morte do marido.
     
    Como inovação, Mario Júlio decidiu priorizar a juventude no discurso editorial e na estratégia comercial do jornal. Entre outros motivos, porque os estudantes e os jovens eram os seus principais consumidores. Interagir e acompanhar as demandas dos leitores parecia uma maneira astuta de sobrevivência e recuperação da empresa jornalística. O Jornal dos Sports se colocou ao lado dos estudantes ao divulgar as passeatas e as assembleias do crescente movimento estudantil contra a ditadura. A oposição jovem ao governo alcançaria seu ponto máximo depois do assassinato do estudante Édison Luís no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, pelas forças de repressão policial, que resultaria na “Passeata dos Cem Mil”, em junho de 1968. 
     
    As novas diretrizes do jornal estimulavam a área artística e cultural, tratando de música, teatro, cinema, ciência, televisão e artes plásticas. O periódico ultrapassava a simples etiqueta de jornal esportivo, com o intuito de abarcar mais leitores, com diferenciados interesses. Naquele final dos anos 60, contratou colaboradores, como o cartunista Henfil, o poeta Torquato Neto e os jornalistas Zuenir Ventura e Ana Arruda Callado. Tornava-se, assim, uma referência nas artes e na cultura, passando a ser conhecido como um veículo aberto, de livre-experimentação para aspirantes das faculdades de jornalismo que então surgiam. Foi nessa época que apareceu no “Cor-de-Rosa” o encarte Sol, com o subtítulo “O jornal do Poder Jovem”. Ele ficaria ainda mais associado à juventude ao ser citado na música “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, sucesso em um Festival da Canção transmitido pela televisão em 1967.  
     
    O periódico era um veículo de circulação de ideias, com a difusão de livros, filmes e pensamentos de intelectuais brasileiros e estrangeiros. Nas páginas do Jornal dos Sports falava-se do cineasta Glauber Rocha, do poeta Ferreira Gullar e das inovações da psiquiatra Nise da Silveira, comentava-se sobre os cinéfilos da “geração Paissandu”, sobre a Cinemateca do MAM, sobre os filmes na Maison de France, debatia-se a obra de personalidades internacionais, como o semiólogo Roland Barthes e o antropólogo Claude Lévi-Strauss. 
     
    A estratégia de interação com o público juvenil ligado à cultura e aos esportes gerou um desdobramento inesperado: a linguagem das reportagens do Jornal dos Sports inspirou o nome de torcidas organizadas dos times carioca. Em suas faixas, a inscrição Poder Jovem repetia o vocabulário adotado por aquele periódico em particular (inspirado no slogan internacional Young Power, que se irradiava nos Estados Unidos e em vários países). E foi durante o ano de 1968 que, emuladas pelo jornal, surgiram essas torcidas dissidentes juvenis no Rio de Janeiro. O apoio e a cobertura do periódico contemplariam tanto os estudantes quanto os insurgentes torcedores.
     
    Assimilando parte da efervescência da época, em 1967 surgem os movimentos Jovem Flu, do Fluminense, e Poder Jovem, do Flamengo. No ano seguinte, é criado o Poder Jovem, do Botafogo. Eles nascem sob o mote da rebeldia juvenil e se consolidam pouco tempo depois como torcidas organizadas: em 1969 são criadas a Torcida Jovem do Flamengo e a Torcida Jovem do Botafogo. No início de 1970, é a vez da Força Jovem do Vasco, e no final do mesmo ano aparece a Força-Flu, seguida da Young-Flu. 
     
    No ano de 1968, o Jornal dos Sports registrou protestos das torcidas dentro e fora do Maracanã, em sintonia com as passeatas estudantis que ocorriam no país. Assim como os estudantes faziam enterros simbólicos de reitores, ministros e outras autoridades nas ruas, os torcedores malhavam seus dirigentes no Maracanã. “Jornal dos Sports / de grande expressão/ Jorge Veiga Brito/ depressa no caixão!” tinha como alvo o presidente do Flamengo, que também era deputado da Arena (partido alinhado com o governo militar) e conhecido pelos torcedores como “Coveiro do Fla”. A torcida se referia a uma série de reportagens do periódico contra o político. No dia seguinte, o protesto ganhou a primeira página cor-de-rosa: “Torcida enterra Veiga Brito no Fla-Flu”. 
     
    A vanguarda torcedora não reconhecia a liderança dos antigos chefes de torcida do mesmo time, como Jaime de Carvalho, líder da Charanga do Flamengo, fundada em 1942. Invertia-se a concepção inicial de torcida como apoio incondicional ao clube: agora ela contestava o desempenho da equipe, vaiava jogadores e dirigentes e promovia passeatas, protestos, pichações e até apedrejamentos de carros. As novas torcidas surgiam como grupos inicialmente pequenos, entre 30 e 50 componentes. É difícil precisar sua origem social exata, mas o perfil etário revelado pelos jornais indica estudantes com cerca de 16, 17 anos. Afastando-se dos grupos tradicionais de torcidas organizadas, que ficavam à esquerda e à direita das cabines de rádio do Maracanã, as Torcidas Jovens passaram a se posicionar atrás dos gols. De início contando apenas com faixas, elas cresceriam ao longo dos anos 70. Em 1971, a Torcida Jovem do Flamengo, chefiada por Pedro Paulo Bebiano, estudante de Engenharia da Universidade Gama Filho, já tinha 291 membros cadastrados e com carteirinha de sócio.
     
    A convergência entre os acontecimentos e as reportagens fazia nascer um novo tipo de torcedor, que não se satisfazia com a condição de passividade nem se contentava com a caracterização tradicional de “décimo segundo jogador”. A plateia tornava-se uma espécie curiosa de vanguarda esportiva, encabeçada por jovens que se sentiam capazes de assumir compromissos participativos e reivindicativos no futebol. Esse momento de contestação generalizada resultou numa disputa pela identidade no interior das torcidas organizadas. As arquibancadas não eram mais apenas um espaço lúdico para competições de caráter carnavalesco e familiar, como faziam as charangas e as torcidas organizadas dos anos 1940 e 1950. Elas criavam novos estilos de torcer e espaços para expressão popular passional. 
     
    Aquelas explosões de cólera dos torcedores estavam fadadas a ser efêmeras, mesmo destino das manifestações estudantis que, junto com outros movimentos sociais, capitularam ante o Ato Institucional nº 5, promulgado em 13 de dezembro de 1968. Ainda assim, inaugurou-se ali um momento distinto na vida futebolística nacional. Era o início de um processo de protagonismo das arquibancadas, que se consolidaria nas décadas seguintes. Hoje, longe das motivações e do contexto que as originou nos anos 1960, as Torcidas Jovens continuam demarcando e disputando seus territórios nos estádios (e em seu entorno) – talvez destinadas, sem saber, a um novo movimento social ou da mídia que as reaproximem da política. 
     
    Bernardo Buarque de Hollanda é professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas e autor do livro O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (7Letras/ Faperj, 2010). 
     
    Saiba Mais
     
    MURAD, Maurício. O futebol e a violência. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2007.
    REIS, Daniel Aarão Reis & MORAES, Pedro de. 1968: a paixão de uma utopia. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2008. 
    RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artista da revolução, do CPC à era da televisão. Rio de Janeiro: Record, 2000.
    TEIXEIRA, Rosana da Câmara. Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas. São Paulo: Annablume, 2003.
     
    Internet
     
    Federação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (FTORJ): http://ftorj.wordpress.com/
    Associação Nacional de Torcidas Organizadas do Brasil (ANATORG): www.anatorg.com.br
     
    Documentário
     
    Territórios do Torcer (Bernardo Buarque, Isabella de Almeida, e Thaís Blank, 2015).