Durante o período colonial, aportaram por aqui milhões de escravos africanos que levaram nas costas as principais atividades econômicas do Brasil. O tráfico negreiro internacional seguia sem freios. Até que, em 1810, portugueses e ingleses assinaram os Tratados de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação. Foi um tiro certeiro no comércio de cativos que Portugal alimentava por vias marítimas. As consequências rapidamente chegaram à outra ponta do mercado, do lado de lá do Atlântico.
Nessa época, a principal rota de africanos para o Brasil começava na Costa da Mina, na África Ocidental. E, na primeira década do século XIX, quem liderava a atividade era o Reino de Onim – situado onde hoje está a cidade de Lagos, capital da Nigéria. Quando Adoxa, rei de Onim, viu sua lucrativa atividade ameaçada pelo cerco dos ingleses, não pensou duas vezes: pegou papel e pena e escreveu à Coroa portuguesa.
Guardada na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, “Carta ao rei de Portugal, franqueando aos portugueses portos em seus domínios”foi escrita em março de 1812. Propunha-se exatamente o que sugere o título: Adoxa comunica a D. João – talvez desconhecendo que na época ele ainda era Príncipe Regente – que os portos de seu reino africano estavam inteiramente à disposição dos portugueses.
Na tentativa de reatar os laços comerciais com um de seus maiores compradores de escravos, ao longo da carta o rei Adoxa desfia argumentos e exalta a veia comercial de sua terra. Segundo ele, desde muito antes do reinado de seu pai, Onim já mantinha uma relação de amizade com vários povos, entre portugueses, ingleses, dinamarqueses, americanos, holandeses, espanhóis. Com todos eles comercializavam escravos – sua principal mercadoria – azeite de palma, marfim e “panos do Gabu” (região vizinha a Onim, hoje Guiné-Bissau).
Para o rei de Onim, não havia motivos para que Portugal quebrasse essa relação tão duradoura que chamava de amizade. É que esses laços fraternos sempre lhe renderam bons frutos. Como grande parte do continente africano, Onim tinha no comércio internacional, especialmente o de escravos, sua principal atividade econômica.
Adoxa seguia em frente na argumentação, defendendo a soberania dos reinos africanos em face dos ingleses. Ele ressalta que seu reino e vários vizinhos, como o Porto de Appé e Badagre, não fizeram qualquer tratado com o país, não franquearam seu litoral para instalações inglesas, tampouco poderiam permitir que os navios daquela nação aprisionassem embarcações das nações amigas no litoral africano, como já havia acontecido com Portugal.
Ele escreveu: “Não me consta que nenhuma destas nações fizessem tratado algum com os ingleses, ou que lhe franqueassem o mais pequeno palmo de terra para sua habitação, sem que estivessem empregados no seu negócio (...). E que por esta posse e título pode-se chamar aos Portos declarados acima seus domínios, e virem sem atenção tomar os navios da Nação amiga e aliada, bem como aconteceu no meu Porto que fizeram prisioneiros a três navios Portugueses”.
De fato, é possível encontrar registros do aprisionamento de várias embarcações baianas no litoral africano durante aqueles anos. Quando faziam as negociações locais, os comerciantes portugueses recebiam recados de que deveriam circular apenas nos trechos da costa em que houvesse entreposto português.
Por isso mesmo, a oferta de Onim de abrir seus portos para Portugal era tentadora. Em troca, era pedida manutenção da amizade entre os países e, claro, o tráfico negreiro: “sendo este o sentimento que me motiva a oferecer a Real Coroa Portuguesa, em meu nome e dos meus sucessores, as minhas Praias para que nelas possa V. ª Real mandar edificar quantos Fortes quiser e terem o título de Praias Portuguesas, sem que para isso eu queira tributo, ou débito algum só sim desejo a boa amizade, e opulência do Comércio”.
Os esforços para potencializar as oportunidades no comércio de escravos vinham de muitos lados. Durante o século XVIII e início do XIX, as autoridades africanas chegaram a enviar embaixadores à América. Do Daomé e de Ardra, outros de importantes reinos da Costa da Mina, estiveram algumas vezes no Brasil para conversas que pretendiam proteger suas transações comerciais. Adoxa, portanto, não estava sozinho.
Abertura dos portos às avessas
Lia Jordão